terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A Madeira na Obra de Manuel Teixeira Gomes


Manuel Teixeira Gomes, nasceu na cidade algarvia de Portimão em 27 de Maio de 1860, e faleceu exilado, voluntariamente, em Le Bougie, Argélia, a 18 de Outubro de 1941.
Estudou o ensino secundário no seminário da cidade de Coimbra, na qual também frequentou os preparatórios da Faculdade de Medicina, que não chegou a terminar. Após ter abandonado os estudos académicos foi habitar durante algum tempo, em Lisboa e no Porto, onde desenvolveu uma vida descuidada e ociosa, praticou o jornalismo republicano, e privou com muitos escritores e artistas, entre eles, Fialho de Almeida, João de Deus, Sampaio Bruno e Soares dos Reis.
Aos 23 anos passou a tratar dos negócios de conservas e exportação de frutos secos que pertenciam ao seu abastado pai, tendo feito várias viagens comerciais a muitos países da Europa e ainda à África e Ásia; que foram aproveitadas para aperfeiçoar e requintar as suas inclinações artísticas, claramente visualistas, e fortemente sibaritas e hedonistas.
Portador duma marcada sensibilidade aristocrática, e defensor dum modelo político social-democrata, Manuel Teixeira Gomes participou, activamente, na vida política nacional, e depois da implantação da República, exerceu o alto cargo de «Ministro Plenipotenciário em Londres», apenas interrompido num curto período pela sua demissão ordenada por Sidónio Pais, mas logo reatado após a queda desse ditador.
Em 1923, foi eleito «Presidente da República», função que exerceu com grande dignidade e distinção, mas passados pouco mais de dois anos, desiludido com as mediocridades e constrangimentos que o abarcavam, acabou por renunciar ao cargo e abandonar a vida política, indo viver silenciosamente no Norte de África.
Efectivamente, numa carta endereçada em 7 de Janeiro de 1927, ao seu amigo Dr. F. Mira, Manuel Teixeira Gomes deixou bem expressa a sua amargura, comentando: - «Quando me soltei de Belém, para voltar às minhas antigas peregrinações, foi no propósito de me remeter ao mais absoluto e intangível silêncio».
Felizmente, esse mutismo apenas se verificou quanto à actividade política, pois seria precisamente após o exílio, que Manuel Teixeira Gomes escreveu grande parte da sua vasta e multifacetada obra literária.
De facto, noutra carta enviada dois meses depois (17 de Março) a António Patrício, seu amigo e confrade, Teixeira Gomes com a proverbial ironia que o caracterizou, garantiu que não ficaria quedo ou deprimido: - «Eu sempre fui um homem de desordenado viver e pensar (valeu-me o ter chegado a este mundo quando já estavam apagadas as fogueiras da Santa Inquisição, sem o que há muito que uma delas me haveria purificado da mácula dos meus pecados) e eu não levo jeito nenhum de tomar melhor caminho. Começo a nutrir certas apreensões acerca dos dias que me esperam; são capazes de me não deixarem festejar o meu próprio centenário, ao que eu punha certo empenho, pois era o mais bonito número do resto do meu programa»...
O crítico literário Serafim Ferreira escreveria no «Diário» de 5 de Agosto de 1989, que em relação à Literatura - actividade a que desde muito cedo Teixeira Gomes também se dedicou – o período posterior ao frenesi político, «foram anos de reflexão e meditação sobre os problemas e valores estéticos e humanos de que claramente deu conta nas muitas cartas aos amigos, incidindo, com alguma sentida amargura, nos sobressaltos e questões sociais levantados depois da derrota em 1926 da agitada e convulsa primeira República».
Manuel Teixeira Gomes legou-nos uma importante obra literária. Em 1899, publicou Inventário de Junho (reeditado e aumentado em 1933); em 1903, Cartas Sem Moral Nenhuma; em 1904, Agosto Azul (reeditado e aumentado em 1930); em 1905, Sabina Freire; em 1909, Gente Singular; em 1932, Cartas a Columbano; em 1935, Novelas Eróticas e Regressos; em 1937, Miscelânea; em 1938, o livro que tem sido considerado a sua obra-prima, Maria Adelaide; em 1939, Carnaval Literário; e em 1942 Londres Maravilhosa, (edição póstuma).
Na «História Ilustrada das Grandes Literaturas», Óscar Lopes comentou que as primeiras obras de Manuel Teixeira Gomes tinham uma clara intenção anti-romântica e certa feição naturalista, bem visível «naquele cuidado de pormenorização tipificadora, que dessa escola resta como aquisição definitiva; e no gosto dos casos de doença, de degradação física e psíquica, como as devastações do bócio em «Maria Adelaide», os numerosos macrocéfalos e outros aleijões das suas páginas».
Mas, se é verdadeiro esse ponto de partida naturalista, é também certo que já nessa altura se inserem «os seus achados expressionistas, tão invulgares entre os escritores portugueses do seu tempo, excepto Fialho, seu amigo íntimo».
Na verdade, como refere Urbano Tavares Rodrigues no «Dicionário das Literaturas Portuguesa, Galega e Brasileira» desde muito cedo «a actividade do instinto e a imaginação plástica convergem no neo-helenismo impressionista de Teixeira Gomes (como ele próprio confirmou); sendo que nele se confundem e se interpenetram o sensualismo e o esteticismo. A arte é para Teixeira Gomes uma fonte de emoções sensuais, a vida um objecto de contemplação estética».
De facto, somos de parecer que abertamente se pode afirmar, que em Teixeira Gomes a apreensão do belo exalta e enobrece o desejo, e este é como que o eixo da sua literatura recheada de virtuosismo e esteticismo aristocrático.
Aliás, Urbano Tavares Rodrigues, que foi quem mais e melhor estudou a vida e a obra do escritor, diria mesmo «que tornam-se líricos a sua insistência nos temas eróticos e o seu misticismo estético, que é como uma segunda natureza conquistada. Uma pronunciada aversão pela discursividade didáctica ou moralizante, a repulsa do realismo «banal», combinam-se em Teixeira Gomes com a ironia, predispondo-o (…) para um comprazimento na crónica egolátrica (egocentrista), no retrato satírico, na acentuação do anómalo e nas evocações voluptuosas».
De resto, Tavares Rodrigues e a maioria dos escritores que se debruçaram sobre a obra do escritor, asseverou que «veículo de matéria cromática, sensorial, o seu estilo, longe do puro deleite verbal, anseia observação aristocrática de Teixeira Gomes. Em Ruskin e Wilde, em Rémy de Gourmont e Heine se podem encontrar os parentes espirituais mais acatados por Teixeira Gomes, propenso como o primeiro ao comentário de obras de arte, ligado aos restantes pela ironia sensorial, pela compostura perante a dor, pela exaltação da vida. Os seus mestres na literatura pátria, são por um lado os puristas e lavrantes da forma – Bernardes e Castilho – e por outro lado o grande subjectivo e gigante do sarcasmo, Camilo Castelo Branco, que a sua geração (Fialho à cabeça), saudosa de afirmação, de novo entroniza, apeando o objectivo Eça com o seu programa naturalista, do pedestal a que pronto regressaria».
Por outro lado, Óscar Lopes depois de lembrar o carácter epistolográfico e miniatural duma parte substancial da obra de Manuel Teixeira Gomes, refere que «o fôlego do escritor algarvio, não ultrapassa o quadro pitoresco ou de costumes, o da anedota, do esquisso, do conto.
Mas, nesses limites em que se vaza um conversador vibrátil e apurado, a composição é admirável, a linguagem inexcedivelmente clara, pura, exacta, variada de junturas, na sua restrição propositada de meios. Trata-se, assim, de um artista bem conhecedor da sua arte, a quem importam os clássicos, a gramática e os dicionários. (…)
À guisa de conclusão e síntese, Urbano Tavares Rodrigues mencionaria que «o mais significativo da obra de Teixeira Gomes é a revelação duma forte personalidade estectizante, a apetência de serenidade agnóstica, o tom helénico-romântico (apesar do seu repúdio do romantismo frenético), duma atitude pagã antropocêntrica e a amorosa e consciente realização estilística (pureza de sintaxe, casticismo lexical, impressionismo das imagens)».

Nos primeiros anos do séc. XX, o escritor permaneceu algumas semanas na Madeira, donde mencionando as belezas, os panoramas e o quotidiano da ilha, escreveu quatro cartas literárias ao seu amigo Luís Botelho, que foram publicadas, em 1903, num livro intitulado «Cartas Sem Moral Nenhuma».
Depois de destacar o humor vivaz, e a força do estilo do escritor, Urbano Tavares Rodrigues referiu que esse livro é na obra de Manuel Teixeira Gomes, «um dos mais aliciantes pela constante aliança das estesias e da ironia sarcástica, pela frescura de certas emoções e fantasias, como os descritivos da ilha da Madeira, desde os combates de nuvens aos mantos do verde e aos algares grandiosos da paisagem, às três noites seguidas de adoração ao corpo saboroso da Cecília dos cabelos adamascados, ou ao enlevo diurno do narrador perante o tríptico de três Apóstolos na sacristia da Igreja de São Pedro».
No Prefácio dessa 5ª edição de «Cartas Sem Moral Nenhuma», Tavares Rodrigues, comentou ainda que o arrojado título daquela excelente obra, reforçou as ofensas, e calúnias dos conservadores e desafiou ainda mais a estúlcia da burguesia reaccionária, contra o cintilante escritor algarvio. Contudo, parecia-lhe óbvio que aquelas primorosas cartas, «sendo opostas ao espírito moralizador convencional, são em última análise aguerridamente morais, mesmo quando preconizam o pleno direito à felicidade dos sentidos, e até em especial quando assinalam misérias desumanas ou sofrimentos que o enunciador compadece e lhe despertam a revolta».
Realçou ainda, que «Cartas Sem Moral Nenhuma», «frutos da vagabundagem de um olhar dedicado e de uma pena imaginosa, (…) pedem meças aos melhores textos similares de um Valéry-Larbaud, de um Giradoux, de um André Gide. Temos aqui a cartilha ibérica do mais mediterrâneo dos nossos escritores, o mais fadado para reproduzir e estilizar a natureza, a pintura, a escultura e o desvario erótico em termos de jóia verbal, discurso ele mesmo adornado, e pulcro, paralelo ao referente, por vezes superlativo e então – entre o classicismo e a sobrecarga quase barroca do léxico e da imagética – tocado de um flavor pessoal inimitável, a raiar a genialidade».

Feita esta breve referência ao valor estético e literário de «Cartas Sem Moral Nenhuma», passaremos a resumir e a recriar os capítulos dedicados à Madeira, com a nota que os consideramos como umas das mais harmoniosas páginas da literatura portuguesa, sobre as singularidades e belezas do arquipélago madeirense.
Teixeira Gomes começa por referir que vindo das Canárias, o velho e sujo «Aline Woermann» aproximou-se da Madeira de madrugada, e foi já quase no ancoradoiro da baía do Funchal, que descortinou a ilha, «toda estofada em vegetação de um profundo verde-garrafa, subir como um pano de veludo esticado, que as nuvens estivessem puxando do mar…
«Cortina espessa, húmida e feracíssima, sem delineamentos nem contornos, absorvendo tudo no seu nivelado plano ascendente, apareceu-me tal a convencionada antítese das ilhas clássicas do Mediterrâneo, descarnadas, sinuosas, de recortes caprichosos, sem qualquer sugestão utilitária como abundância, riqueza, fertilidade… Nesses enfeites do mar e do céu, peanhas propícias à obra de arte humana, onde uma coluna truncada ainda realça tão bem como o cabuxão no engaste de oiro, apurou a nossa raça os modelos definitivos da paisagem espiritual e poética, escravizada à arquitectura.
«A primeira impressão da ilha da Madeira – tenebrosa e farta – é flagrante desacato a esses modelos respeitáveis e vem trilhar-nos, a despeito de tudo, a estesia que honramos…Mas, como chega depressa a reconciliação e como esmaece a aparente hostilidade suavizada em trechos surpreendentes, infinitamente diversos e de engenhoso arranjo»! …

Após desembarcar, o escritor hospedou-se na «Quinta Vigia», harmonioso e belo hotel dentro da cidade, que considerou o sítio ideal de retiros dos intelectuais, «para sentir a imaginação, largando pano direito a remotas, desconhecidas, almejadas plagas…
«Tudo é imobilidade e sossego no panorama em gris que a minha vista abrange: mar de calmaria, adamascado, com a sua orla bordada de barcos em relevo – cascos de seda frouxa e mastreação de retrós – à luz igual, branca, branda, que o alto céu leitoso côa do sol que se não vê; as verduras mociças da serra aliviando-se de espessura em verduras mais tenras, ao contraste dos casais caiados, e, longe, sombrejando o horizonte, uns arremedos de Capri, ilhas perdidas cujas corcovas montam por sobre a última linha do mar»…
Manuel Teixeira Gomes aclarou ainda que os esplêndidos jardins aéreos da Quinta Vigia - que foram afagados pela bela «Sissi», doce e infeliz imperatriz da Áustria - estabeleciam um inviolável refúgio para quem busca descanso e isolamento.
«A Quinta Vigia, cesta de flores, posta em peanha de basalto cujo plinto o mar lambe, foi o ninho preferido, ninho de silêncio, onde a miúdo vim macerar as minhas saudades em ondas de perfumes, movidos e avivados pelo hálito do mar. (…)
«Em redor de mim os cravos poisam nas craveiras, espertos, como bandos de passarinhos: há cravos vermelhos, da cor fogo, que ardem ao sol, pequeninas chamas que vão desaparecer…
«Não são os cravos…
«Os cravos têm o perfume das vodas do campo; aqui, neste jardim, o cheiro da rosa vence todos os mais perfumes. É que ainda aqui paira o aroma da «rosa intangível» que os poetas adoraram, essa fluida imperatriz cuja incontestável realeza o profuso, excessivo manto, que lhe punha nos ombros o cabelo solto, apregoava. Foi aqui que ela sofreu os tormentos da sua pubescência dolorida» …

Um dos primeiros passeios que Manuel Teixeira Gomes realizou na Madeira foi aos arredores do Monte, para onde galgou aproveitando o velho e esfalfado comboio. «É já uma elevação grande, o Monte, e o seu acesso, ao tirar da locomotiva arquejante, pela íngreme pendente acima, remete-nos à fantasia de certos contos diabólicos onde se violam sem escrúpulo as leis naturais. A paisagem torna-se ludíbrio da vista invertendo perspectivas, deturpando curvas, machucando casas, bandeando rochas, cavando abismos infernais sob a gaze esverdinhada das trepadeiras em flor, desencantando vales idílicos a meio de ravinas lôbregas e revoltas, arrancando os pinhais à sua perpendicularidade majestosa para os arrojar como feixes de lanças de encontro aos broquéis espelhados dos tanques de água.
«Todos estes elementos de discórdia, aquietados à paragem do elevador, tecem, sumptuosamente, a dalmática, a capa de asperges, admiração e enlevo dos olhos, sob a qual o Monte avoluma desde a roda do mar ao adro da igreja. Os pinhais fazem-lhe o fundo de veludo escuro, cercado e lavrados da doirada ramagem das carvalheiras, por onde reluz a pedraria das fontes» …

Partindo dessa pitoresca capela, à cata de novas perspectivas, o escritor caminhou pelos pinhais que se alastram por cima, «com mira nos cabeços de granito quase inacessíveis que a miúdo calvejam na densíssima vegetação das matas, empresas por vezes temerárias mas generosamente recompensadas na exultação dos horizontes larguíssimos, a mais e mais despejados ao sucessivo desdobrar de ondulações montanhosas».
Depois, torneou para leste, «dando volta à escavação fragosa do Curral Pequeno, descansando na passagem da Choupana – trecho de composição alpestre - até os prados da Camacha, campina em planos curtos de relva, quebrada por sebes de vimeiros».
E a tarde já ia longa quando o escritor regressou, e desceu do Monte ao Funchal, «dentro de uma canastra de verga, assente em duas tiras de madeira ensebada – trenó rústico – resvalando vertiginosamente pelos declives arrebatados da calçada estreita, onde há traços quase verticais cuja passagem provoca angústias de queda mortal» …

No dia seguinte, Teixeira Gomes visitou Câmara de Lobos, «porto de pescadores fechado em rochas de basalto, crespas como ficam as gotas de chumbo derretido que as crianças deitam na água fria, para tirar sortes, em véspera de São João. Aí perto levanta-se do oceano uma despropositada mole, de temeroso esboço elefantino, aguentando a encosta risonha do vastíssimo vale que deu entrada aos descobridores da ilha.
«A estrada que liga o Funchal a Câmara de Lobos, nos lanços arrojados, no modo de galgar as agrestes, apertadas ravinas, nos encurvamentos pitorescos por onde se esquiva, plagia agradavelmente a estrada de Posilipo» …

Outra jornada que encantou o escritor, pela irrefutável originalidade e beleza, foi a que realizou ao Curral Grande ou Curral das Freiras, que o deslumbrou ao ponto de comentar: - «Esta pavorosa depressão geológica encerra no círculo das suas muralhas de granito negro, à profundidade de muitas centenas de metros, um vastíssimo e deslumbrante tapete de tintas fundidas a primor em culturas variadas e prósperas. Tal é a surpresa de encontrar assim entregue à monstruosa aglomeração de rochas bravias a guarda daquela maravilhosa alfaia, cujo desenho e colorido somente se explicariam nas combinações de uma arte reflectida e consumada, que não sopeamos a fantasia e à incitação do conjunto fabuloso, para ali trasladarmos instintivamente quadros mitológicos, imaginando que ali mesmo se congregaram os exércitos de titãs para ocultar o seu paládio, antes de acometer o céu…
«Prestava-se a luz à visão perfeita, exaltada na transparência do ar que acendia as cores como cristal puríssimo. Tudo ali era pintura; nenhum relevo perceptível destrinçava as árvores de outra vegetação mais chã; as casas denunciavam-se no rigor geométrico das suas manchas e movimento algum traduzia o gorgulhar do homem naquele fundo matizado onde a impressão de isolamento absoluto, de alheamento expiatório, de natureza enclaustrada, sobrepujava a qualquer outra».
No regresso, para que a quinta-essência fosse total, o escritor afirma que descansou «numa espécie de boceta oval, toda alcatifada a musgo roxo, genuína gruta de poema pastoril, a cuja entrada rectangular pendia uma cortina de água desfiada, e os fios tão juntos e distintos como nos reposteiros de missanga japonesa».
E ainda não refeito pelo deslumbramento das paisagens do Curral das Freiras, antes de regressar Teixeira Gomes ainda anotou, assombrado: - «O meu guia, a quem não foi indiferente o assombro que se me transluzia no rosto, prometeu-me passagens ainda mais portentosas nesta ilha desconhecida. Falou-me do sítio de Santana como se pintasse a tebaida dos poetas; ergueu a mão, lentamente, sobre os abismos e aguçou no espaço uma ponta diabólica: o Pico Ruivo; os seus grandes olhos reflectiam cambiantes infinitas: eram as cascatas do Rabaçal».

Manuel Teixeira Lopes fruiu algumas horas de descanso no Funchal, onde na manhã do dia seguinte, apoiado ao imponente mirante da «Quinta Vigia», observou o desembarque dum contingente de tropas inglesas com destino ao Cabo. «Desembarcaram limpos e empertigados nos seus uniformes de caqui engomado. (…) Regressam, amarfanhados, mas não combalidos, pelos efeitos das beberagens venenosas – que sob o rótulo de «Madeira genuíno velho» os taberneiros lhes ministraram -, distribuindo pontapés e socos, em guisa de paga, aos assassinos que os perseguem».
Na parte da tarde, quando descia até ao centro, o escritor confidenciou: - «aproveitarei para dar uma volta pela cidade que ainda não vi; nem sequer entrei à Sé. Contento-me quando vou a caminho do Monte em parar diante da torre quadrada que se ergue das abóbadas da abside. É um arranjo de linhas e de cor altamente pitoresco.
«A construção ampara-se a gigantes toscos – rematados por agudíssimos fusos de pedra torcida entre os quais corre uma renda manuelina – para formar terraço. Apoiado em parte neste, e sustido lateralmente por gigantes mais sólidos, outro terraço mais elevado cerca-se de balaústres, donde se levanta o campanário de pedra negra faustosamente mitrado de azulejos claros. A ramagem de duas viçosas palmeiras, que repuxam dos alicerces, espaneja-lhes as pedras carcomidas».
Dias depois, visitaria o interior da sumptuosa catedral, que descreveu como sendo composta de três naves, «com um tecto de cedro artesoado, em rosas octógonas, com pinhas vazadas e pinhas pingentes, alternando, e tudo embutido a marfim e madrepérola, no melhor estilo hispano-árabe.
«A capela-mor, manuelina; - infelicíssima com a pintura das cadeiras de coro retocada a azul celeste e caca de anjinho; a capela do Santíssimo lavrada e cosida em oiro, resplandecente, riquíssima, e o tesouro da irmandade recheado de ostentosas alfaias do bom tempo de D. João V; muito azulejo curioso, de fábrica portuguesa, em largos panos historiados a figuras azuis. Alguns painéis, de forte colorido, pelos retábulos e a jóia por excelência, a célebre cruz que D. Manuel ofereceu, a qual tão apreciada foi em Lisboa, na Exposição de Arte Ornamental, que por pouco não fica lá esquecida. É com efeito objecto para ensandecer a quem lhe antegostar a posse: as delicadíssimas figurinhas dos quadros da Paixão, que lhe enxameiam os braços, parecem obra italiana» …

Nessa semana, o escritor visitou a igreja de São Pedro e ficou maravilhado com um tríptico em madeira, hoje exposto no «Museu de Arte Sacra do Funchal» que por um feliz acaso encontrou na sacristia, «onde jazia há mais de um século, incrivelmente, sem nunca ter conseguido arrancar aos frequentadores ou visitantes da igreja palavra alguma de louvor ou admiração... (…)
«É um verdadeiro tríptico, com os painéis laterais susceptíveis de serem dobrados sobre o painel do meio, como se fecham as portas de um armário. Uma figura de corpo inteiro – três quartos do natural – em cada quadro.
«O do centro representa São Pedro visto de frente, a cabeça um pouco inclinada para a direita e rematando a leve inflexão do corpo. Com a mão esquerda segura as pregas do manto e com a direita, erguida à altura do peito, empunha a chave doirada do céu, sustendo no antebraço um livro aberto. (…) Velho, calvo, corado, de barba branca, tipo rústico, de expressão jovial, bondoso e são, como convém à figura que reproduz. O fundo do quadro imagina a larga paisagem em volta de um lago, ou ria, ou braço de mar sereno, onde as margens se alcantilam de rochas agudas. Ao lado direito, em proporções de miniatura, o episódio da vida do pescador que deixou a barca no mar e vem, por cima de água, direito ao Cristo que o espera na praia; depois, a perspectiva circular dos rochedos e vegetações que se entremeiam, à esquerda, de edifícios consideráveis até dar no casaria de uma cidade fortificada. (…) Pitorescas ribas com trechos de praia arenosa; florestas fruindo luz; águas fluidas, sob a ampla concha do céu, a desfalecer em tons atenuados de uma doçura liliácea; toda a admirável paisagem esbatida a meias-tintas, onde a figura principal ganha relevo, este fundo pacificador e luminoso é quase a alma do santo comentada.
«O quadro direito representa Santo André. Vestido de escuro, a cabeça a três quartos, o corpo inclinado para a frente, uma das mãos arrimada à cruz em forma de x, na qual padeceu o martírio, a atitude, a expressão do rosto de quem rebate com ironias os assomos da brutalidade agressiva e insofrida… É uma figura de homem vigoroso, na pujança da vida, superiormente belo (…)
«O quadro da esquerda é obra-prima de simbolismo manifesto. Tudo quanto o dogma cristão deve à tenacidade agitadora, ao imperialismo intelectual de São Paulo encontra-se ali escrito, naquela figura imperturbavelmente severa e enérgica, a um tempo meditativa, inteligente poderosa e obstinada… (…) O que se vê da paisagem, ao fundo, é em linhas convulsas, por onde assoma uma nesga de floresta tenebrosa ou torreja um castelo minaz.
«A classificação desse tríptico deve apresentar dificuldades ainda aos mais expertos. O valor subjectivo – sem quebra de perfeição naturalista – das paisagens que lhe tomam o fundo fá-lo, talvez, derivar da escola de Bruges e contemporâneo de Gerard David, mas a obra está absolutamente limpa dos trechos ornamentais, bordados e alfaias, que constituíam as delícias de pintores flamengos de então. (…)
«É sem dúvida trabalho de grande mestre. (…) Mas que seja flamengo, ou, ainda, alemão – o Holbein não repudiaria o Santo André – pouco importa a quem lhe não goza o sentido arqueológico ou histórico e sim a actualidade da beleza que persiste na harmonia do colorido, no engenho da composição e pelo vigor do desenho».

Depois de sair da igreja de São Pedro o escritor passeou pela cidade, onde era bem visível a situação de abandono total por parte do Governo Central, aliado à profunda crise económica, e ao deplorável atraso social e cultural da Madeira de finais de século XIX e princípios do XX. Então, acudiu-lhe ao espírito reflexões amargas de fel:
«Desgraçado país! Aqui, no Funchal, da linda casa onde habitou Colombo, relíquia venerada, romagem de estrangeiros ilustres, ainda perfeita há dez anos, só resta um cliché fotográfico: arrasaram-na por causa das eleições… Nesta ilha abençoada não há «porto», não há «estradas» … e chamaremos infames aos Ingleses se nos derem o que nos falta só a troco de uma substituição de bandeira? Chamaremos infames aos Americanos quando eles, em nome da humanidade e a troco de sacrifício igual – leve – levantarem e acenderem nos Açores os faróis de que os Açores carecem para não serem mais, em mãos dos portugueses, o terror da navegação universal» …

Na semana seguinte, Manuel Teixeira Gomes passou quinze dias de inefável regozijo contemplativo em Santana, como refere «a filtrar a alma por sítios tão altos, tão luminosos, tão desafogados, que ma restituíam límpida, serena, permeável às mínimas irradiações de beleza exterior. Movimentos, formas, cores, reverberavam-se-me no cérebro por clarões iriados da alegria de viver.
As cinco léguas de travessia do Funchal até a hospedaria de Santana, foi trabalhosa, com chuva e cerração, muitas horas sempre com água acima do artelho, «pisando caminhos suspensos à laia de escadas de corda sobre despenhadeiros apocalípticos. (…)
«Esperavam-me…Despi-me; confiei o fato encharcado a uma das duas bruxas saturninas a cujo cuidado fora cometido o trato da minha pessoa. Jantei na cama e adormeci ao som da tempestade que durou pela noite fora e era deliciosa de ouvir nos interlúdios do sono. (…)
«Amanheceu o dia seguinte inesperadamente formoso e a chuva não incomodou mais durante a minha permanência ali; tempos vários, frescos, de ventos e nevoeiros e muita nuvem a empanar o céu de formas em perpétua evolução, como estudos para ornamentações cada vez mais faustosas… O tempo, enfim, que melhor convém a digressões alpestres (…)
«Sorvia o mundo pelos sentidos, abrindo os olhos às perspectivas infinitas, aos céus ampliados na circunferência do mar que a elevação das montanhas dilata, as prodigiosas transfigurações da paisagem, ora aparecendo em miniaturas esmaltadas, nas profundíssimas cavidades dos vales, pelo rasgão de uma nuvem opaca, ou, deslocada no caixilho móvel do arco-íris, esbatendo-se sob a musselina flutuante das neblinas leves, ou sepultando-se nos nevoeiros crassos, que a abafam por fim em borrões quase líquidos – redomas de vidro cheias de fumo negro… E logo a súbdita rajada de vento, a ressurreição das matas cerradas que sobem pelas encostas arrebatadamente, como exércitos, levando, a modo de guiões nas pontas mais altas dos pinheiros, farrapos de névoa doirada; e na volta do atalho, a terra a resvalar por vinte espinhaços, varetas de um leque meio aberto, cujo pano matizado o mar arredonda.
«Ao cair da tarde o sol oblíquo ardia nas poças de água tão violentamente que encandeava e, mais intensa do que à excitação do álcool, a vida acelerava-se na embriaguez das excessivas altitudes…O meu sono era suave e continuava durante a noite o embevecimento dos dias generosos, em sonhos cujas imagens buscavam o meu travesseiro bailando como pérolas brancas nas réstias de luar» …

Durante esses dias de encanto, Manuel Teixeira Gomes efectuou alguns passeios pelas magníficas redondezas da vila. «Foi ao Santo da Serra e ao Pico Ruivo, custosas jornadas que alternavam em dias de mais energia com as visitas aos povoados vizinhos e às fragas da costa.
«Em volta de Santana o campo bem cultivado e fértil reparte-se infinitamente em pequenos retalhos por sebes tecidas de roseiras, hortênsias e lírios. A indústria tem chegado ali ao extremo de prender ao flanco das rochas aprumadas no mar pequenos canteiros de verdura, sobrepostos em cadeia de alcatruzes, por sítios cujo acesso se deve reputar empresa para loucos».
Maravilhado, o escritor relata: - «Para rematar o prazer desses dias de Sant´Ana a situação do hotel reservava-me, nas horas sedentárias, o seu admirável panorama, cuja tribuna era um grande jardim abandonado.
«Ao centro a casa, sob a exuberância festiva das flores de um buganvil que lhe bucolizava a fachada, fazia de caramanchão, sustida, rusticamente, em torcidos troncos de parreiras; nos festões de púrpura desbota do buganvil, emaranhavam-se as vides com a viçosa alacridade das hastes novas que abrem ao sol as folhas de cristal doirado.
«O jardim, todo, em volta, celebrava a glória de vegetar livremente, por desvairadas composições cromáticas e promiscuidades subversivas dos bons preceitos de cultura.
«O cálice dos lírios roxos enfeitava a hirsuta grenha dos buxos outrora tosquiados; dois ciprestes agudos viam-se liados até meio na rede das trepadeiras multicores, como bandarilhas de honra; presos à mesma moita, os botões de rosa, cheios, pesados, amarelos com jeito de limões, as estrelas de veludo gasto das rosas negras, as crespas borlas fartas das arregaçadas rosas cor de carne. Outras rosas desfolhadas maculavam de sangue os cortes de brocado rescendente, tecidos por jacintos e narcisos em canteiros ainda geométricos. Árvores imensas de camélias, tão inçadas de flores que pareciam fingidas, a meter-se ainda em cima nos enredos de florinhas brancas dos jasmineiros de Itália e, suspensas nas pernadas dum carvalho único, exorbitante, os xales de glicínias sumptuosamente franjados…
«Parte do jardim tornara-se impenetrável pela densíssima vegetação que o enchia, mas via-se, de longe, desse miolo de verdura, alar a fluência magnífica das bananeiras estéreis, os leques malabares das palmas anãs, as vergastas dos bambus e, ardendo como fachos acesos, os tirsos alaranjados dos cactos floridos… Do lado oposto e ao abrigo do biombo de loureiros, entretecidos de heliotrópios, cujas flores, na sombra lúcida, lhes recamavam a folhagem envernizada de gotas azuladas, o tanque de águas verdosas, turquesa oval, reflectia por entre rolos de limos trechos do céu profundo. Era ali que durante os crepúsculos se destilavam os perfumes mais activos.
«O jardim vivia o momento supremo do seu esplendor, hora imperial, fulgurante, perdulária, que se encurtava para se não repetir mais, exausta em voluptuosidades arrebatadas e caprichosas; e essa hora divina foi para mim só» …

Do terraço da hospedaria, livre por todos os lados, graças à amplitude de sucessivos vales, Teixeira Gomes descobriu «em redor a imensa região de serranias revoltas, que enchem o horizonte de cimos recortados como um abecedário turco e garram, para o sul, na ponta de São Lourenço…
«A ilha saturada de água ressuda agora em fontes, cascatas e ribeiros, cujo murmúrio ouvido no jardim, como um solo de flauta modulado a distância, os melros acompanham chilreando em coro.
«Mas o que ia no céu não eram meras combinações ornamentais; as nuvens davam ali espectáculos ordenados, de acessível compreensão. Comédias e tragédias e autos e farsas.
«Os protagonistas eram uns monstros de algodão nevado, e aparência vagamente ursina, que dois dias depois da minha chegada assomaram ao horizonte lá dos lados de leste e nunca mais desampararam a cena. Se por acaso o vento norte os obrigava a acolher-se a bastidores, ei-los que, ressurgindo de oeste, iam tranquilamente acastelar-se nas cristas da serra, levando o céu às costas, como coisa muito sua e do seu uso íntimo. Armavam todas as tardes umas aparatosas tendas de cetim bordado a froco, cujas franjas desciam até o mar, e nelas se recolhiam ao cair da tarde, em majestosa procissão, com os Reis à frente, a quem o Gregório chamava Dom Fabrício e Dona Giralda.
«Passaram alguns dias em batalhas que pelo método a que tudo obedecia mais pareciam torneios, e era de ver, durante os terríveis recontros, como se abolavam as resplandecentes couraças e que jorros de sangue lhes corria das feridas e vinham pelo céu abaixo juntar-se, a poente, num lago de púrpura. Desse lago levantou-se uma tarde um dragão horrendo que arremeteu de fauces escancaradas direito ao sol. Correu-lhe ao encontro Dom Fabrício, despedindo chamas do arnês de diamante. Mas o dragão levou-o de vencida, arpoou-o com as garras, engoliu o Sol e rolou para o mar escabujando e dando urros…
«Depois fez-se entre os monstros a grande paz em que os deixei. Saíam com a aurora a apascentar os rebanhos de ovelhas de prata e desciam invariavelmente, sem mais desvio, a pendente do mar onde passavam a noite. Só uma vez os vi fora de água depois do sol-posto: estavam todos à roda da Lua a estudar, talvez, algum maravilhoso fenómeno que nós não percebíamos cá da Terra» …

Manuel Teixeira Gomes regressou de Santana pelo caminho que bordeja o Faial e embarcou na praia de Machico para o doce remanso da «Quinta Vigia», no Funchal. «Por toda a parte a vegetação pulula e as mesmas rochas desaparecem sob espessíssimos mantos de musgo, de modo que um estofo solto parece cobrir o esqueleto da ilha, sustendo-se nas depressões em regaços de veludo e selando-lhe os espinhaços de feltro brando. Certos caminhos desenroscam-se nas gargantas dos algares, pelos debruns dos despenhadeiros, à laia de serpentes; outros são como frágeis laços de nastro atirados a esmo aos lombos cheios; outros riscam as penhas escuras e perpendiculares de ziguezagues – as linhas quebradas das faíscas eléctricas nos horizontes plúmbeos» …

Poucos dias depois, o escritor foi de passeio à famosa, «Quinta do Palheiro Ferreiro», «que era a propriedade mais bem cuidada e mais célebre da ilha, verdadeiro apanágio de casa reinante.
«Em situação esplêndida e, à semelhança dos parques ingleses, armando, ao acaso, sobre um prado uniforme, igual, de relva viçosa, ou canteiros de flores, os grupos de árvores raras, as alamedas pomposas de carvalhos, de castanheiros, de plátanos, os pequenos labirintos de pinheiros, os lagos reflexivos e as fontes sussurrantes, limpa de toda a rusticidade inconveniente, não será fácil inventar cenário mais apropriado para idílios perversos do que o recinto daquela embelezadora quinta» …

As últimas digressões pela ilha da Madeira executadas por Manuel Teixeira Gomes e que o deixaram deslumbrado, encaminharam-no para o Rabaçal; e até às serras de São Vicente e Boaventura:
«Fui embarcado do Funchal à Calheta, que é um cordão de casas, suspenso do espinhaço da serra, à semelhança dos rosários de pimentos que se vêem às portas das vendas espanholas…
«O trecho fragoso da costa que o vapor percorre despeja, agora, dos alcantis sobre o mar infinitas cascatas, como se a ilha fosse uma imensa concha de granito a transbordar água clara.
«Vai-se da Calheta ao Rabaçal em continuada ascensão por lombos ouriçados de pinheiros novos e fundos barrancos vestidos de giestas amarelas de oiro que o vento açafroa aos sulcos – os sulcos deixados pelo roçar, leve, dos dedos sobre um estofo de pelúcia… Atravessa-se à luz de archotes um quilómetro de túnel – o Furo – e desemboca-se na região das «águas loucas», o Rabaçal, onde tudo se desfaz em cristais líquidos a correr para os abismos de veludo, verde.
«Ali, ainda subsiste a primitiva vegetação em urzes que atingem dimensões de carvalhos grandes e nas dragoeiras-da-índia, árvores quase fabulosas, com troncos abertos e cavados a modo de grutas amplas no seio da rocha…
«Desfazem-se os rochedos em água que lhes rebenta do coração e repuxa e brilha e cai, silenciosa, nos tapetes de musgo.
«Uma estreita cornija que serpenteia sob o lençol, pejado de cambiantes, de extensa cachoeira, dá acesso ao assombroso meio cilindro, cavado no granito, onde esfuziam com desordenada violência, espadanando em leques ou vergastando em cordas grossas, dezenas de fontes, e sobre elas, de altura espantosa e tomando-as todas dentro de uma luminosíssima cúpula de vidro prismático, outra cascata a desfechar noutro mais vasto cilindro, fojo temeroso e sem fundo por cujos recessos a vegetação esponjosa lhe absorve e abafa o ruído…
«É o Risco e o Sítio das Vinte e Cinco Fontes.

Vistas e percorridas todas as excelências em torno da Calheta e do Rabaçal, que se multiplicavam em girândolas de beleza e assombro; o escritor percorreu as serras de São Vicente e Boaventura que «pedem para ser vistas por miúdos e «vividas» durante meses. O género pastoril, a não ter nascido na imaginação dos poetas que buscavam cenários adequados a idílios rústicos entre almas cândidas, inspirou-se, decerto, em regiões parecidas a esta, se as há: murmuram os ribeiros, chilreiam as aves, choram as fontes e as grandes árvores agitam brandamente sobre os prados matizados a sombra cariciosa das suas ramas… Aónia e Pérsio por lá andam perdidos…
«Mas a fim de satisfazer a todos os gostos também não escasseiam ali vestígios de convulsões tremendas, com perspectivas trágicas. Topa-se a caminho do Curral Grande com uma escadaria colossal de basalto que, sendo infinita, não leva ao céu nem ao inferno…; é uma expressão de ansiedade petrificada».

Nas cartas que estamos recriando, Manuel Teixeira Gomes também nos deixou algumas páginas reveladoras da sua imaginação fortemente esteticista e sensualista; bem patentes na narração do corpo saboroso de Cecília, uma jovem camponesa do Monte, que tinha sido seduzida por um primo, e vivia por conta dum inglês rico e zeloso, que se tinha ausentado da ilha; facto que o escritor aproveitou para obter os favores dessa magnífica e esplendorosa gema…
«Era um perfil idealizado à maneira dos cunhos gregos que eu divisei, argênteo quase, no interior penumbrento de uma casa térrea, de passagem para o Monte. Expressão muito fina e o que quer que fosse de longinquamente, subtilizadamente, caprino; olhos claros sob a leve curvatura das sobrancelhas negras e dois rolos de cabelo loiro, levemente arcados também e paralelos às sobrancelhas, alisando-se sobre a testa para unirem as pontas detrás da cabeça. (…)
«A Cecília tem a consciência exacta de quanto vale despida. Viveu até aos dez anos descalça, na serra, e os pés, perfeitos, conserva-os intactos, mau grado as elegantes botinas de tacão alto, a cujo molde os sujeitou. (…) Contou-me que o dissoluto amante fotografou-a repetidas vezes, em diversas posições estudadas nua, mas conservando-se de meias e botinas… Para arranjar fundos aos quadros colgava nas paredes colchas preciosas de que ela me mostrou a colecção admirável.
«Eu observei-lhe: - O teu amante, além de libertino, parece-me homem de pouquíssimo gosto… Tu és incomparavelmente mais formosa descalça e para to provar vamos repetir as lições que ele te deu, mas sem botinas nem meias…
«Às atitudes académicas ajuntava ela outras de suas invenções; a mais atraente era de joelhos sobre a cama, sentada nos calcanhares, com um sorriso malicioso e quieto, a apontar para mim os bicos dos seios hirtos, cada um em sua mão… Era imagem que o poeta aceitaria para pôr à entrada do palácio da Ventura… (…) Apeteceu-me beijar-lhe os olhos, sorvê-los como duas gotas de vinho generoso… (…)
«Julguei de outra vez surpreender-lhe nos olhos claros uma levíssima tinta de melancolia.
-« Que tens tu? – Perguntei?
- «Nem eu sei bem… Desejava ser cabra e comer de bruços a erva verde… - e o seu rosto tomou a mais lídima expressão vegetativa» …

Já com saudades do mar, Teixeira Gomes, fez as últimas despedidas da Madeira, pois no dia seguinte embarcaria no «Cabo Verde», e já melancólico revelou: - «Respigando nas minhas sensações após a deliciosa ceifa, foi ainda ao sossego umbruoso da Quinta Vigia que recorri – a Quinta Vigia das horas de grande calma. Esta cesta de flores, posta em peanha de basalto cujo plinto o mar lambe, foi o ninho preferido, ninho de silêncio, onde a miúdo vim macerar as minhas saudades em ondas de perfumes, movidos e avivados pelo hálito do mar… (…) Em redor de mim os cravos poisam nas craveiras, espertos, como bandos de passarinhos: há cravos vermelhos, da cor do fogo, que ardem ao sol, pequeninas chamas que vão desaparecer… (…)
«A lembrança de uma pequena ilha morre depressa na memória; fica-nos dela uma vaga imagem, fingida, a boiar à tona do mar distante; é um navio desmantelado que já não levanta ferro, inválido, incapaz de seguir viagem… (…)
«Destes perfumes, destas flores, da vida livre e encadeada no resplendor que assoma às arestas das montanhas – e as sestas breves junto às fontes claras – e a ânsia fútil de subir, para que a redoma do céu abranja um circulo de mar mais vasto – e a caça dolosa aos desejos fugitivos nas pupilas dos olhos que se esquivam – e a esperança da virgindade a violar – e a impressão dos teus seios que amadureceram ao calor das palmas desta mão - ; é de tudo isto que eu teci a mortalha com a qual te enterrei já, ilha encantadora e selvagem, neste jardim onde o perfume da rosa vence todos os mais perfumes» …

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