terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Madeira na Obra de Luiza Grande Lomelino - Luzia


Luísa Susana Grande de Freitas Lomelino, nasceu na cidade de Portalegre, em 1875, e faleceu a 10 de Dezembro de 1945 na sua casa de residência no Funchal, mais precisamente na «Quinta Carlos Alberto», sita na rua do Jasmineiro; e era filha do secretário-geral do «Governo Civil do Funchal», Eduardo Dias Grande e de Luísa Ana de Freitas Lomelino.
Embora tivesse nascido no Alentejo, Luísa Grande passou grande parte da infância na «Quinta das Cruzes» em companhia dos avós maternos, o morgado Nunes de Freitas Lomelino e de Dª Ana Welsh de Freitas Lomelino. Em 3 de Abril de 1896, casou com o morgado do Jardim do Mar, Francisco João do Couto Cardoso, de quem se divorciou, oficialmente, em 1911, aproveitando e beneficiando da Lei da república de 3 de Novembro de 1910.
Além duma educação esmerada e de ter visitado várias cidades europeias, Luísa Grande foi uma das mais brilhantes e cultas escritoras portuguesas dos fins do século XIX e das primeiras décadas do XX; tendo sido considerada, «O Eça de Queirós de Saias», numa época em que as mulheres tinham extrema dificuldade em se afirmar, publicamente, como autoras literárias.
Utilizando nos seus trabalhos o pseudónimo de «Luzia»; Luísa Grande Lomelino, só bastante tarde começou a escrever e a publicar, incentivada pela sua talentosa amiga, também escritora e investigadora, Dª Maria Amélia Vaz de Carvalho, que foi casada com o célebre poeta Gonçalves Crespo.
Contudo, depois de ter publicado o seu primeiro livro Luzia jamais deixou de escrever, mesmo após ter adoecido e ficado cega. Deste modo divulgou entre outras obras, Rindo e Chorando (1922); Cartas do Campo e da Cidade (1923); Os Que se Divertem – A Comédia da Vida; (1931); Almas e Terras Onde eu Passei (1936); e Uma Rosa de Verão (1940).
Comentando a forte relação da escritora com a Madeira, José Martins dos Santos Conde, no livro «Luzia: o Eça de Queirós de Saias», referiu que «quando uma amiga de Lisboa lhe escreve e pergunta: Quando voltas? Não te agarres. Tu és de cá, não és de lá…Luzia responde: - Eu já mal sei donde sou. Como certas plantas em todos os terrenos deito raízes. Onde chego, julgo sempre que vou ficar. Sinto-me já amadeirada. Tenho o meu lugar em todas as mesas de «bridge». Pertenço a todas as associações».
Por sua vez, Luís Peter Clode mencionou no «Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses», que «embora nascida no Continente, a Madeira era para Luísa Grande a sua terra adoptiva e onde passou a maior parte da vida». (…)
Acrescentou ainda, que segundo um biógrafo da escritora «os seus livros não são uma obra de mocidade. Não há nela a inquietação, o entre abrir de sonhos, os passos irreflectidos e audazes de quem marcha na vida, supondo levar na mão um facho de triunfo. A sua obra é sobretudo evocadora para o fio de luar das suas recordações».

Em «Cartas do Campo e da Cidade», Luísa Grande de Freitas Lomelino, (Luzia) publicou uma série de cartas escritas em 1918 e 1919, do Bussaco, Lisboa, Ribeira Formosa, Bonfim e, finalmente, da cidade do Funchal, donde redigiu a primeira epístola em 4 de Abril de 1919 e a última a 20 de Setembro.
Quinze anos depois Luísa Grande divulgou «Almas e Terras Onde Eu Passei», onde também se podem ler alguns trechos escritos na Madeira, versando o quotidiano da ilha, e um curioso relato das suas vivências durante a «Revolução da Madeira» de 1931.
No Livro «Cartas do Campo e da Cidade», que passaremos a recriar, Luísa Grande de Freitas Lomelino, com alguma ironia e muita elegância, debruçou-se, sobretudo, sobre a vida e os costumes, da aristocracia e da classe dominante da Madeira no início do século XX, precisamente nos primeiros anos da transição da Monarquia Constitucional de que foi simpatizante, para os agitados e conturbados tempos da 1ª República.
Mas, além de algumas paisagens e comentários sobre a vida trepidante dos salões e das célebres quintas madeirenses, Luzia também transmitiu, amistosamente e com alguma cumplicidade, a grande influência dos ingleses e dos seus hábitos e costumes no quotidiano madeirense da época.
Numa primeira carta endereçada à sua jovem amiga Maria, escrita em 4 de Abril de 1919, no «Bela Vista Hotel» do Funchal; «Luzia» exaltava o clima da Madeira: - «Chove e faz sol. O céu está cinzento, azul, cor-de-rosa, verde, doirado…Um céu inverosímil, sobre uma terra inverosímil, onde se pisam flores…E toda a Madeira rescende como o teu lenço, Maria.
«Estou talvez no Paraíso… Sim, foi certamente aqui que Adão e Eva comeram aquela deliciosa maçã que tanto lhes amargou depois…
«Aqui os nossos antepassados venerandos trocaram a monotonia da perfeição sem fim pela doce vida imperfeita, onde as rosas são mais belas porque se fanam, onde a hora é mais querida porque foge, onde se tem sede de eternidade porque se morre…Aqui conheceram a mortal tristeza e o mortal amor…
«Por isso os madeirenses andam sempre enamorados de …seja lá do que for, que a gente afinal gosta é da ilusão» …
Animada, Luísa Grande, incitava a amiga, tentando convence-la a fazer as malas para visitar a Madeira, e afiançava: - «É fácil e doce a nossa vida. Não corre mais tranquilo um rio manso.
«Somos elegantes. Temos boas maneiras e hábitos civilizados. Falamos baixo. Não gesticulamos. Em Lisboa, vive-se na rua, na Garrett, nos animatógrafos, no teatro, nos automóveis. Nós preferimos viver nas nossas casas, que sabemos tornar bonitas e confortáveis, sem gastar uma fortuna. Têm uma incomparável frescura as flores das nossas jarras. Não fomos buscá-las às «vitrines» do Chiado. Vieram dos nossos jardins, húmidas ainda do orvalho que as beijou.
«Servimos o chá segundo as nobres tradições do chá inglês, tão mal compreendido na capital. De resto fazemos tudo à inglesa» …
E insistia, sobre os requintes e primores da ilha, multiplicando argumentos, por vezes irónicos, para a persuadir: - «Queres esquecer, queres ignorar? Queres pôr, entre os teus olhos e o feio mundo, aquele radioso véu da fantasia com que o Eça enfeitou a rude nudez da verdade? Vem à Madeira.
«Depois, que branduras de costumes! Que bom, que humilde – a cem léguas do povo soberano – o povinho da Madeira!
«Habituada à altiva independência dos meus rendeiros alentejanos, que me tratam de igual para igual, confesso-te que fico enternecida – um pouco confusa, envergonhada também – quando um caseiro de Santa Cruz me deposita aos pés o seu cestinho de ovos – nenhum aparece sem um presente – com tamanhas genuflexões, que nem que eu fosse o Papa… E sempre de chapéu na mão: «Senhora ama» para cá, «Senhora ama» para lá…
«Até a sociedade, Maria, a temível sociedade, que em toda a parte constitui a camada mais feroz do género humano, é relativamente mansa. Ninguém pretende endireitar o mundo… torto de nascença. Ninguém diz: - Não admito…
«Bisbilhoteia-se – oh, já se vê que se bisbilhoteia! Pois em que havia a gente de passar o tempo? – Mas com uma certa meiguice. As mais graves e iracundas senhoras limitam-se a lançar, de vez em quando, a sua excomunhão sobre qualquer saia mais curta, qualquer chapéu mais exagerado, qualquer brancura de pele que surja mais indiscreta do decote ou da manga dum vestido.
«Nunca falamos em política. Ignoramos as instituições que nos regem. Desconhecemos o cavalo-marinho, o revolucionário civil e a senhora talassa conspiradora. Não fazemos discussões às portas do café. É-nos completamente indiferente o problema nacional e o futuro das colónias…
«E, se tão amáveis milagres não conseguirem seduzir-te, outro maior, melhor, te prometo ainda. Queres ficar inteiramente nova, inteiramente menina? Vem à Madeira.
«Tens pouco mais de vinte anos, bem sei. Mas, em cada dia que passa, na breve existência, cai uma folha, fana-se uma flor… É curta a Primavera. (…) E todos os caminhos, alegres ou tristes, escuros ou luminosos, levam-nos para a velhice. Só na Madeira – terra mil vezes abençoada! – a gente pode ter dobrado o cabo perigoso dos trinta e mesmo o cabo tormentoso – tormentosíssimo! - dos quarenta, e creio que aquele em que se deixou toda a esperança, como na porta do Inferno de Dante, o dos cinquenta.
«Desde a criada que nos serve, o carreiro que conduz o nosso confortável carrinho, a mulher da Camacha que nos vende flores e o caixeiro que nos vende bordados, todos nos chamam: - Menina!
«Assim é perfeitamente em vão que, cada manhã, o meu espelho anuncia mais uma ruga, mais um cabelo branco. Entra a criadinha, tão fresca no vestido engomado, diz-me na sua estranha entoada madeirense:
«- Bons dias, menina (menaina). E eu logo me convenço: Foi o espelho que mentiu… É um espelho maldoso, caluniador. Sou nova outra vez… Sou menaina»!

Numa nova carta escrita a 10 de Abril, no mesmo Hotel, Luísa Grande comentava a outra amiga, que bem se lembra e não dúvida de ter escrito à Maria muitas maravilhas sobre a radiosa paisagem da Madeira, a frescura das flores, a mansidão dos costumes,« aquele superior não te rales, deixa andar, corra o marfim»… Mas, pensa que não lhe dissera que tudo estava na mesma:
«Se acrescentei que, nesta terra, nada tinha mudado, que nos conservamos livres dos vandalismos do progresso…Ah! Margarida, não foi então da Madeira que eu escrevi, mas daquele doirado país da ilusão, onde por vezes habito. Porque infelizmente está bastante mudada, bastante… «adiantada», a nossa ilha. Quando aqui vieste, já as redes, as pitorescas redes, que tanto te divertiam, andavam um pouco fora de moda, mas eram ainda os confortáveis, simpáticos, «amorosos» (como lhes chamavas) carrinhos de bois que, ao som daquela arrastada cantilena: - «Cá para mim, boisinho, para mim! Cá para mim Muriano! Para mim! Bonito! (Bonaito)» - que nos levavam aos jantares da condessa da Torre Bela, às «soirées» da condessa de Ribeiro Real, aos «bridges» de Mrs. Blandy… Ia-se em passo pachorrento; (…) e antes d´uma pessoa se lançar nas doidas valsas ou nos febris «sans-atous», tinha tempo de sobra para dormir uma dessas deliciosas sonecas tão reparadoras do sistema nervoso.
«Agora há os banais automóveis e os «side-cars» horrendos que atroam a cidade com os seus esganiçados assobios. Não se dobra uma esquina sem perigo de vida. Não se atravessa a dantes tão quieta, silenciosa e… de todo repouso rua dos Aranhas sem o Credo na boca!
«As minhas amigas, muito estrangeiradas, muito modernas, adoptaram logo, com entusiasmo, este novo meio de locomoção… Mary B. – aquela loira tão fina, tão bonita, (…) tornou-se uma… um desembaraçado «chauffer». Vestida de sarja escura, o cabelo escondido sob um véu cinzento, enormes luvas de camurça, deformando-lhe as esguias mãos, vemo-la constantemente no árduo trabalho de concertar um pneumático…
«- Então já não se vê um carrinho, um amoroso carrinho?!
«Ainda se vê, mas … ai dele! Foi também vítima dessa doença da pressa, que, após ter invadido o mundo, chegou à calma Madeira. Já ninguém quer andar… a passo de boi. Duas possantes mulas substituíram o doce Muriano, o manso Bonito»…

E sempre aguçando a sua lupa conservadora e aristocrata, mas temperada por uma fresca ironia, Luísa Grande de Freitas Lomelino confidenciava à amiga as transformações significativas que ia verificando no tecido urbanístico do Funchal:
«Não esqueceste, decerto, aquele velho passeio da Constituição, onde se festejavam, com música e iluminações de vidrinhos de cores, todas as nossas datas gloriosas, e à sombra de cujas lindas, frondosas árvores, era moda sentarem-se as elegantes do bom velho tempo…Pois o fino gosto dos nossos governantes não poude suportar velharia tão inútil, incómoda, atravancadora e, ainda por cima, atentatória do regímen... Árvores que ouviram o hino da Carta, onde porventura tremularam bandeiras azuis e brancas, são árvores suspeitas, criminosas… E as grandes figueiras da Índia e as nobres magnólias tiveram o destino de tudo o que, no nosso país, é grande e nobre… Caíram assassinadas. Defronte da velha Sé escancara-se agora uma larga avenida, género moderníssimo, género grande cidade! … A pobre igreja tem o ar arrepiado, envergonhado dalguém que os malfeitores deixaram nu em plena rua… (…)
«Outras coisas mais extraordinárias ainda se farão… A colossal avenida que, por ora, graças a Deus, chega apenas ao Jardim Novo, deve prolongar-se triunfalmente por S. Lázaro fora… (…) Oh! quando se trata de embelezar os nossos governantes não olham a despesas! Do antigo Funchal, dentro em pouco, não restará uma pedra. Moinhos das Mercês, Convento das Capuchas, beco das Almas, que a doce capelinha guardava e protegia, beco das Cruzes, sombrio entre os altos muros floridos de «bougainville», velhas quintas, velhas discretas casas, cantos misteriosos onde morava o silêncio, quebrado apenas pelo chorar das fontes, tudo enfim, que conservava ainda um pouco de poesia, o que emprestava ao banal presente o mágico encanto do passado, durará apenas, no domínio da nossa saudade, o breve tempo que nós duramos» …

Ainda hospedada no «Hotel Bela Vista», mas sempre com o habitual remoque e muita ironia, em 15 de Abril, Luísa Grande tornou a escrever à amiga Margarida, aclarando que não tinha voltado à sua linda quinta que cheirava a jasmins: «Alugou-a um sírio, negociante de bordados... (…)
«Ignoro se as delicadas corolas dos jasmins continuam a exalar os seus capitosos aromas. Mas as roseiras plantadas por mim, (…) essas mandaram-nas cortar. Cada um a seu gosto. O sírio prefere as paredes nuas. Nos canteiros, junto à varanda, que em cada mês de Maio eram como um bosque em miniatura onde cresciam e se enroscavam e transbordavam doidas de seivas, as ervilhas de cheiro; medram agora fartas couves… (…)
«Mas, eu não vou fazer filosofia triste…Deixo isso a Schopenhauer. Está um tão lindo tempo! Oiço rir, tão alegre, a água das levadas! E é hoje o dia da moda, dia de dança e chás elegantes na quinta Pavão. Eu embirro algum tanto com os dias da moda… Porém, tenho um convite para o chá da minha amiga Mary. (…) Vamos pois, ao Casino, que como dantes está cheio de flores. Há sobretudo petunias, uma doida, quase inverosímil profusão de petunias, desde as brancas, apenas tocadas de manchas lilás, até às cores de violeta e às daquele roxo avermelhado, que tão bem vestia a tua amiga Veva.
«A grande sala de baile conserva os berrantes veludos encarnados que faziam o meu horror. E nos mesmos bancos, as graves mamãs perfilam-se, chaperonando as meninas que dançam…Mas os pares do meu tempo contavam todos, pelo menos dezoito ou vinte anos. Agora, Senhor do Céu! Dir-se-ia que se mudou para a sala do Casino a classe da srª Elisa Costa. (…) Meninas de dez a doze anos, valsam, e tangam com meninos de igual… menoridade. Ambos tão compenetrados do seu papel! (…)
«Na sala de jogo o espectáculo não mudou. Em volta da roleta faces empalidecem, bocas comprimem-se, olhos interrogam numa ânsia, mãos nervosas distribuem moedas sobre o pano verde.
«Fora, no terraço sobre o mar, estão postas as mesas, reluzem as pratas nas toalhas muito brancas, entre jarras de rosas. A linda e alegre Mary espera-me já. (…)
«É delicioso o chá. Há bolos da Felisberta. Bolos de mel e queijadas e morgadinhos e rapaduras de coco. Somos seis convidados. Porém daí a pouco todos os «dandies» rodeiam a nossa mesa – ou não fosse ela a mesa da Mary… Acendem-se cigarros. Susana diz-me: Como vês, Luzia, aqui podemos fumar em público. Graças a Deus estamos em terra civilizada. – E logo, violenta, brusca, passa a atacar o atraso, a hipocrisia – sobretudo a hipocrisia – dos costumes lisboetas.
«- Vocês fazem tudo às escondidas…
«Ruth – a dos magníficos olhos e dos irrequietos, tempestuosos gestos, (…) organiza um «pic-nic» no Monte, para mostrar-me as giestas selvagens que nada ficam a dever às civilizadas glicínias.
«- Vai-se de automóvel. Volta-se de carrinho. Levam-se machetes…
«- E cartas de «bridge» … A Luzia diz que não vai sem «bridge» … (…)
«O doutor T. o mais pitoresco e original dos nossos janotas, depois de felicitar-me pelo meu regresso à «haute gomme» funchalense, e pela elegante abundância das minhas malas que, certamente, conteem tesouros «dernier cri, last fashion», convida-me, para no próximo baile, o grande baile da Páscoa, fazermos juntos… alguns kilómetros de valsa. (…)
«Reparo em duas senhoras, (…) que numa mesa ao lado da nossa, discutem, tão abespinhadas, tão nervosas, que realmente temo vê-las chegar a vias de facto!
«Pergunto baixo a Susana: - O que têm elas? Rivalidades?
«- Sim, de fidalguias.
«Ah! Margarida, mais uma coisa que eu tinha esquecido! Em Lisboa quando senhoras se engalfinham trata-se sempre de homem ou de vestido… Pois na Madeira ninguém se incomoda por coisas de tão somenos importância e tão fáceis e substituir. (…)
«Pergaminhos, títulos, morgadios, e acima de tudo descendência, parentesco, ar de família com o Zarco - nosso grande cavalo de batalha – eis o que disputamos, o que pretendemos arrancar umas às outras! (…)
«Já o sol se põe. Crésus magnífico vai fazendo milagres no horizonte. Cada nuvem é um pedaço de oiro. Chove oiro sobre o céu, chove oiro sobre o mar».

A 4 de Maio, em nova carta escrita no mesmo hotel do Funchal, Luzia anunciava a chegada da primavera, recordando que «a condessa de Noailles pediu a protecção do Senhor contra a doçura perigosa do mês de Maio. Ah! Que diria madame de Noailles se conhecesse Maio nos exagerados jardins da Madeira… o desatino dos perfumes, a febre das rosas!
«Felizmente, que eu saiba, nenhuma das minhas amigas se deixou contaminar, embora seja tão contagiosa a doença e elas tão intimas das rosas. Nenhuma sentiu o quente, pesado beijo da primavera. E a bebedeira dos perfumes que à noite exala a terra… Têm tido mais que fazer, interesses, divertimentos, novidades que muito mais as apaixonam. Porque a primavera afinal é a mesma coisa todos os anos» …

Em 10 de Junho, Luísa Grande de Freitas Lomelino volta a escrever do referido «Hotel Bela Vista» à sua jovem amiga Mary, e participa-lhe: «Junho trouxe-nos, com os nevoeiros cinzentos e os jacarandás azuis, a carícia venenosa da sua humildade quente. (…) Do jardim sobe uma imensa paz silenciosa, até os pássaros cantam em surdina, «pianíssimo, pianíssimo», no receio talvez de acordarem o sonho das coisas… (…)
«E eu tive o mal da Madeira: um estranho mal. Tu sabes o que é. Só os madeirenses o conhecem. Horrível acesso de nostalgia, saudades, ânsia doutra coisa, desejo de partir, de mudar, de fugir a este excesso de cores, de perfumes. Susana chama-lhe: o sangue do Zarco, do aventureiro, turbulento descobridor, a pular-nos nas veias. (…)
«Fechei as janelas para não ver o jardim, para não ver o mar. E também para não ouvir o apito melancólico dos vapores que partiam e irresistivelmente pareciam chamar-me. Não queria obedecer-lhes. Tinha a certeza que a doença havia de passar. O mal da Madeira dá assim, por crises. E fica-se depois mais presa ao seu encanto, e as reconciliações são o que há de mais doce em amor.
«Maio acabou entre festas. Às tão sensacionais de Dolly, seguiu-se um torneio de «tennis» em S. Martinho. A Quinta Dias rejuvenesceu, pôs à moda outra vez, o velho «croquet». A Palmeira ofereceu renhidas, ardentes, partidas de «bridge» naquele lindo jardim branco, que perfumam imensos maciços de açucenas.
Além destas esfusiantes festividades, Luiza contou à Mary que tinham sido um doido sucesso «a função de beneficência para colher fundos para a «Bolsa de Estudos António Georgina», fundada, sabe Deus com que dificuldades, com que lutas, por Feliciano Soares, a quem os estudantes ricos e pobres tanta devem»; e a muito participada «garden party» da Quinta Pavão a benefício do Lactário para crianças pobres, «constituído por Eugénia Canavial, que foi uma das elegantes «leaders» da nossa sociedade numa época em que o Funchal, visitado por príncipes e milionários, podia rivalizar com as mais concorridas e animadas estações de Inverno. (…) Há muito que Maria Eugénia abandonou a sociedade que se diverte. E a sua antiga elegância transparece agora apenas nas festas organizadas a benefício desse Lactário, a que infatigavelmente consagrou toda a sua admirável inteligência e todo o seu admirável coração. (…)
«Prolongou-se sempre animada a «garden party», até que as primeiras sombras da noite fizeram daquela linda sucessão de jardins – depois do Pavão; o da Vigia, dantes tão aristocrático, agora… é melhor não falar nisso; Lambert, o do formoso terraço que vermelhas «bougainvilles» engrinalda; Angustias, o dos altos ciprestes – um único, imenso, e misterioso jardim.
«E aqui tens Maria, as notícias, que me pediste da quieta Madeira…

Em nova carta enviada a 18 de Junho, Luzia, numa prosa ágil, exuberante e por vezes mordaz, conta que o Funchal andava sobressaltado e alvoroçado, com a chegada dos presos políticos, que tinham participado numa conspiração monárquica:
«Durante dois dias toda a nossa atenção, todo o nosso interesse, concentraram-se no navio de guerra que as ondas batiam de manso e onde se debruçavam centenas de cabeças juvenis… todas mais esquentadas umas de que as outras, segundo reza a fama. Consta até que duas inglesas velhas, ardendo em curiosidade – atributo da sua raça e aliás das senhoras velhas de todas as raças – foram num pequeno barco, competentemente armadas de binóculos, bordejar em volta do poderoso vaso de guerra, para logo à chegada constatarem: What they look the youg portuguese rebellious… (…)
«Enfim, após dois dias de espera, ancorados defronte da cidade – segundo os costumes da terra nada estava pronto para recebe-los – desembarcaram no Lazareto os prisioneiros e todo o Funchal que se preza passou a ocupar-se exclusivamente dos seus recomendados… Quem não tem recomendado inventa-o. A mim, por graça de Deus e da minha amável amiga Marquesa de T. coube-me em sorte um conde… dos mais autênticos. Assim, tenho podido fazer parte das peregrinações às masmorras republicanas – última palavra do «chic» madeirense.
«Em vão os tiranos que nos regem, marcaram para as elegantes visitas as horas mais incómodas. (…) e puseram à porta os mais ferozes, intratáveis alferes jacobinos. A gente arrisca a pele mas entra, e em vão suprimiram as mais elementares comodidades, não há uma cadeira, não há um banco, ora em cima dum pé, ora em cima do outro, passam-se, duas vezes na semana, horas de desusada animação.
«Susana pensa mesmo em organizar partidas de «bridge» jogadas no chão… à turca…
«Os conspiradores estão óptimos. Gabam-se, fazem-se pimpões. (…) Declaram d´alto que se conservam no Lazareto porque muito bem querem, acham aprazível, com o mar ali mesmo à mão para os banhos. E não arranjam outra bernarda porque não lhes apetece – está muito calor para bernardas… (…)
«O povo simpatiza com a velha monarquia, «que nunca ofendeu a nossa santa religião» …e, se não fosse o considerável respeito que lhe inspiram os marinheiros já tinha ido ao Lazareto soltar aqueles «inocentes», como lá foi há anos quando… houve uma epidemia de peste, em que ele se recusou acreditar – o povo é tão ignorante. (…) tão desconfiado, tão ingrato; - e sem que corresse uma gota de sangue, quebrou pachorrentamente toda a loiça, atirou a mobília ao mar e trouxe em triunfo os pestíferos para as suas casas…
«Esta carta já vai longa. (…) Daqui a pouco são horas do chá. Tenho apenas tempo para abraçar-te».
Semanas depois, sempre com alguma mordacidade, Lúzia deu conta à amiga que «alguns dos jovens prisioneiros monárquicos do Lazareto, talvez com a delicada preocupação de não abusarem da hospitalidade republicana, resolveram fazer outra vilegiatura. (…)
Numa bela manhã o oficial de serviço constatou que se tinham safado no veleiro do gentil Humberto. Aventura que tem interessado e fascinado todas as imaginações… É que houve meninas apaixonadas pelo conde de S. tão valente, tão «royaliste» e …milionário ainda por cima….

Em 21 de Junho, Luísa Grande Lomelino, noutra carta enviada do Funchal à sua jovem amiga Maria, diz-lhe que «começava o «cotillon», quando decidiu deixar um famoso baile, oferecido por Miss G, à oficialidade dum navio de guerra inglês e ao mesmo tempo – não há como matar duma só cajada dois coelhos – a todos os que mostraram simpatia e interesse pela Inglaterra, nestes calamitosos anos.
«Era justamente meia-noite. Os «flirts» espalhados pelos terraços e pelo jardim, tinham recolhido apressadamente à grande sala vermelha. (…)
«Misses autênticas e misses feitas à pressa – das que em alguns anos de Demerara esqueceram completamente como se diz em português uma …fly! – valsavam já, ostentando nos cabelos os grandes crisântemos de papel cor-de-rosa, que as haviam tornado entre todas eleitas, privilegiadas na primeira figura do «cotillon».
« Muriel, (..) preferira a continuação do seu divertido colóquio com M. – esse M. eternamente encantador, eternamente novo, sob os cabelos brancos – à banalidade dum «cotillon» de verão com ingleses de meia tigela… (…)
«Mary – com um audacioso vestido curto e decotado até o inverosímil, rodeada de reluzentes fardas, fumando cigarro sobre cigarro, instalara-se defronte do grupo virtuoso dos viscondes de B. e dos barões de T. que a cocavam numa curiosidade indignada.
«Susana e Marta, ambas de preto, ambas moderníssimas, ambas travadíssimas já tinham abancado ao «bridge» …
«Senti-me só, perdida, na grande sala. Depois certamente o «cotillon» ia servir de pretexto a numerosas graças inglesas… E Deus não me fadou para a graça inglesa. O defeito deve ser meu. Mal surge um «joke» caem-me os cantos da boca de amargura. Resolvi deixar o baile».

Após abandonar essa divertida festividade, porque fazia um formosíssimo luar, «e porque é tão pacífica, sem perigo, a qualquer hora, a doce terra da Madeira, Luzia decidiu passear pelas ruas desertas da cidade, cujo silêncio rompia apenas, no seu cantar incessante, a água das levadas. E pela voz da água quantas vozes me falaram na solidão, no mistério da noite prateada!
«Maria, tu ris e zombas quando eu te asseguro que, último refúgio de fadas e ninfas, as fontes e os regatos falam; zombas de todo esse mundo gentil e alado que dá à minha imaginação as suas mais lindas festas… porém se estivesses há pouco comigo, eu te provaria, ah! Eu te provaria até à evidência que a minhas fadas existem e são mais que uma ilusão as minhas brancas ninfas… Tê-las-ias ouvido e visto, como eu ouvi e vi, murmurar, suspirar, rir, cantar, dançar, desfiar pérolas, tecer luar, nas musicais levadas da Madeira.
«Junto ao portão da quinta Vigia – a mais aristocrática das nossas quintas – parei. Pus-me a pensar no estranho destino daquela nobre casa, daqueles jardins que tamanho esplendor conheceram! Lembrou-me quando, muito pequena ainda, eu ouvia – qual conto das mil e uma noites – as minhas tia descreverem os sumptuosos bailes de Lady A. que enfeitava, mais de que todas gentil e fina, a figura da Condessa de Farrobo…
«Durante alguns Invernos habitaram a Vigia os Príncipes de O. com a sua numerosa e elegante comitiva. E todo um romance surgiu, um romance de amor, que acabou em «mésalliance» e já se vê, em desilusão, como todos os romances de amor…
«Depois foi essa estranha Princesa de R. herdeira das jóias e da beleza de Josefina, que só aparecia de noite, as luzes veladas por seda e rendas para que não lhes vissem as rugas…
«Depois os terraços sobre o mar, as misteriosas ensombradas alamedas, os luminosos rosais viram chorar inconsolável uma Imperatriz, a mais triste, a mais desditosa e a mais linda… aquela que Barres chamou Imperatriz da Solidão…
«Depois … instalou-se na Vigia um Casino, onde se deram elegantíssimos bailes, os jardins iluminados dir-se-iam floridas estrelas, mas já chocava tanto… parecia tão brutal contraste uma roleta e «crupiers» ali!
«Depois… nem sei, venderam a quinta à companhia dos Sanatórios, cujos projectos não se realizaram por motivos de ordem… inglesa, ficando o nosso governo com todas as propriedades adquiridas pela dita companhia. E começou o longo, cruel abandono da Vigia, utilizada apenas raramente para festas oficiais. (…)
«Depois… um génio mau persegue a pobre quinta. Durante a guerra instalaram-lhe uma bateria no terraço e agora, Senhor do Céu! A Vigia abriga toda uma companhia da Guarda Republicana! (…)
«Assim, entregue a saudades do que foi e apenas do que é, subi a rua do Jasmineiro, respirei o penetrante aroma das trepadeiras, que vestem cada muro, e entrei na longa alameda que leva ao hotel».

Com a habitual ironia e certa mordacidade de monárquica impenitente, a escritora contou à amiga, que tinha ido a um dos «garden- party», que de vez em quando o governador civil republicano realizava na «Quinta Vigia»:
«Era por uma ardente tarde de verão. Havia sol e moscas. Mal se respirava no jardim onde morriam as rosas. Na sala, logo à entrada, esbarrava-se com um busto duma dama arrogante, a liberdade creio eu, gloriosamente embarretada e engravatada de vermelho e verde… Mas, não ficava por aí a preocupação da ilustre autoridade em marcar bem a cor da sua festa. Até os bolos – deliciosos aliás, dignos do real apetite do Sr. D. João V – eram encarnados e verdes… (…)
«Certo que a quem custasse a digerir encarnado e verde que não fosse lá… Porém, meu Deus, eu falo apenas pelo amor da santa harmonia. O busto, a gravata, os bolos, certos convidados… oh! Sobretudo os convidados, de que dizia alegremente Susana: - Vocês acham que a gente escapa desta sem apanhar uma facada»?!...

Em nova missiva escrita em 10 de Julho, Luzia dava conta que a canícula apertava e lastimava-se: «Pelas nossas pesadas, opressivas noites, o calor activa, torna penetrantes, estonteadoras, quase insuportáveis os perfumes dos jasmins, das daturas, das baunilhas. Nas longas, infindáveis tardes enevoadas não bole uma folha. O monótono uah! uah! dos carreiros tem qualquer coisa de triste e selvagem e nostálgico que me lembra África.
«Aos mirantes – especialidade madeirense: não encontras aqui um único quintalório madeirense que não possua o seu mirante coberto de vistosas trepadeiras, com o competente mastro, onde, em dias festivos tremula uma bandeira – afluem famílias inteiras. (…)
«Os menos privilegiados, os que não possuem mirantes, sentam-se às portas, onde as mulheres trabalham naqueles maravilhosos bordados, em que, dir-se-ia, pousaram apenas dedos de fadas, ou se entregam a certas pesquisas melindrosas na cabeça dos filhos pequenos… Ao lado dorme o cão amarelo; e duas ou três galinhas, com um chinelo velho atado aos pés – para não abusarem dos prazeres da liberdade – esgravatam nas pedras da rua. Do fundo escuro das tabernas vem um melancólico tanger de machete…
«Ao cair da noite começa a romaria ao Cais, «rendez-vous»… elegante dos madeirenses que habitam o interior da cidade, as horríveis ruas de João Tavira, do Sabão, da Alfandego etc. Respira-se, de mistura com as salinas brisas, o cheiro acre da maresia e… muitos outros cheiros, a que prefiro não me referir. As senhoras sentam-se, abanam-se languidamente, conversam do calor, das vidas alheias, da carestia das casas no Monte. As meninas passeiam, namoram…
«Pelas oito e meia chegam vapores da Costa de Baixo, e «vilões», carregados de cestos, sobem as escorregadias escadas, atravessam apressados entre os mimosos grupos das meninas. (…) Aos já variados perfumes, junta-se um bafo de suor, de aguardente, de atum salgado, de azeite rançoso.
«Entretanto acenderam-se as luzes. O caminho da Pontinha parece uma estreita fita, picada de pequenas estrelas, a acabar no ilhéu. Do outro lado, os íngremes caminhos do Til, dos Saltos, do Monte, do Palheiro, são outras tantas fitas luminosas, a cortar a montanha. Sobre os plátanos da rua a electricidade põe tonalidades claras de luar. No seu eterno vaivém murmuram as ondas.
«Já as mamãs se levantam, chamam as meninas, sobem vagarosamente a entrada da cidade. Recolhem a penates as Julietas e os Romeus ao Golden Gate… (…)
«Em Julho, após a época alta, fecham o «Casino Pavão» e o «Hotel Reed», ficando poucos estrangeiros na Madeira. É o verão, o odioso verão madeirense, quando a cidade despe as suas elegâncias de civilizada…
«Em fins de Junho ainda celebramos a paz. (…) O amável cônsul inglês mandou-me um copo de «champanhe» para que eu bebesse à paz, à vitória, ao mais monumental trunfo de «Great Brittain». Apenas molhei os beiços, ofereci o resto à criada, que esvaziou o copo com estas palavras profundas: - Para que as coisas fiquem mais baratas» …

Em 20 de Setembro de 1919, Luísa Grande tornou a escrever à sua amiga Maria informando que na primeira semana de Agosto trocou o Bela Vista Hotel - com o seu invariável almoço de peixe-espada e seus astutos «travestis» - pela deliciosa «Quinta das Tílias» no Monte, onde passou as primeiras semanas em suave e preguiçoso remanso, sentada à sombra dos grandes pinhais.
«Pelas tardes em que o nevoeiro suspende pedaços de renda nos ramos das árvores, repeti com Albertina, os antigos passeios. Tornei a ver o Pico das Rosas. Subi ao Pico dos Namorados. Percorri as quintas amigas, desde a Cossart, onde há jardins que parecem talhados por Le Nôtre, até aquela que exala uma tristeza tão nostálgica, a dizer com o seu nome: o Desterro».
Na semana seguinte estalaram os foguetes e a música anunciando as novenas que procediam a festa de Nossa Senhora do Monte, o maior arraial popular da Madeira. E como sempre vieram inúmeros romeiros de toda a ilha que dormiam no adro e na igreja.
«Cada noite a filarmónica de S. Roque, tremendamente desafinada, atroou os ares com polkas, valsas retumbantes e o fogo-de-artifício estalou alegremente numa chuva de estrelas de mil cores. O povinho encantado murmurava um longo ah! de admiração e esquecia que tem fome, que a dificuldade, a carestia da vida aumentam todos os dias. (…)
«Como sempre vieram romeiros de toda a ilha. Dormiram no adro e na igreja. É um velho, encantador costume Nossa Senhora oferecer hospitalidade aos seus peregrinos. Pagaram-se inúmeras promessas. Mais braços e pernas de cera foram guarnecer o altar do milagre. Os círios, essas delicadas hastes em que treme uma flor de luz, consumiram-se aos pés pequeninos da Virgem. Mãos postas, olhos em êxtase, mulheres subiram de joelhos, a grande escada que leva à igreja.
«No campo, sobre a erva, à fresca sombra das árvores, desenrolou-se em pitorescos quadros o lado pagão da festa. Abriram-se os cestos do farnel. Assaram-se no espeto gordas pernas de vitela e de carneiro. Ao monótono som dos machetes rapazes e raparigas dançaram. O Monte, jardim azul como o céu, florido de hortênsias – cá chamam-se novelos – e coroas de Henrique, ficou luminoso e lindo. E tudo decorreu com o habitual entusiasmo, com a habitual devoção.
«Proclamou-se a república. Podem proclamar-se mais trinta repúblicas, esfalfarem-se a dizer asneiras trinta mil pensadores, que a Senhora do Monte nunca deixará de ter a sua festa, será sempre a doce rainha, a suave padroeira dos madeirenses»!

Passados alguns dias depois, o Monte dos veraneantes animou-se e voltou a trepidar. «Foi uma fúria de chás, de «soirées», de partidas de jogo, no Palace, nas quintas, em salas, ao ar livre, debaixo das tílias, debaixo dos pinheiros. Ninguém mais parou. Mergulhámos todas em profunda futilidade. As cabeças passaram a servir apenas para pôr chapéu… (…)
«Depois, depois, minha querida Maria, íamos ardendo… (…) Um enorme incêndio devastou toda a serra da Madeira, esteve aqui mesmo, atrás de nós, nos primeiros pinheirais do Monte. Havia três dias que tínhamos «leste», o vento terrível que é como um bafo de lava. Os novelos e as coroas de Henrique logo penderam fanados. Uma cinza fina cobriu, engelhou as folhas. Formigas e mosquitos invadiram tudo. E ainda que tu exclames:- Shocking! – acrescentarei que como toilette, quase suportávamos apenas a camisa.
«Na manhã de vinte e dois vieram dizer-nos que tinha pegado fogo à serra. A vinte e três o vento redobrou de violência, ateando as chamas. Olhávamos em roda e só víamos labaredas. Ao cair da noite começaram a ouvir-se os mugidos do gado. O fogo já atingia os currais. Depois, num alto clamor, vozes irritadas de homens praguejaram, vozes trémulas de mulheres entoavam o Bendito. E dominando tudo, lúgubre, ameaçador, o vento rugia entre as árvores. (...)
«Começou enfim a fuga através dos campos que as chamas iluminavam sinistramente. Formávamos uma estranha caravana! Albertina, as criadas, os pequenos, iam carregados de cestos, de trouxas. A mim tinham-me confiado – não sei quem nem quando – um par de botas a quem consagrei todos os meus cuidados.
«Chegámos ao largo da Fonte onde está num pequeno nicho, à sombra dos grandes plátanos, a imagem milagrosa. Foi ali, dizem, que a Virgem apareceu toda de branco, entre as roseiras selvagens e logo, aos seus pés miudinhos uma fonte brotou. Era de manhã por um sol radioso… Em cada gota d´água fremia um diamante…
«Numa fúria, que, dir-se-ia crescer a cada momento erguiam-se as chamas. Toda a montanha vomitava lume. (…)
«Adiante nas lindas alamedas do parque, encontrámos os V. com a numerosa criadagem, os cães, uma infinidade de cestos para onde tinham atirado a «trouxe mouxe» as coisas mais disparatadas: toucas do «baby», uma «raquette», uma guitarra! Continuámos juntos.
«Às portas das quintas gente assomava espavorida num pasmo. E contradiziam-se as notícias (…) Resolvemos fazer uma «halte» na entrada do Palace. Sentados no chão, rodeados de cestos, de trouxas, parecíamos um acampamento de ciganos. Pouco a pouco todos os hóspedes do hotel se nos reuniram. Maria de C. em plena crise histérica gritava: - Vamos todos morrer queimados! Vamos todos morrer queimados! E jamais esquecerei a estranha aparição, alta, esguia, vestida de branco, com o cabelo em desalinho, os braços erguidos para a abrasada montanha. Levaram-na. Tudo voltou ao morno desalento. Alberto chegou a cavalo. Contou que a cidade está em pânico. (…)
«O vento soprava mais rijo – É a nosso favor – disse um criado do hotel. Realmente as labaredas pareciam correr para traz, para a serra. Decidimos esperar ali a manhã. A cada instante entravam vultos, ajoujados sob malas e trouxas. Instalaram-se. Trocaram impressões. E na noite da tragédia, pobres personagens de comédia, recaíamos já, insensivelmente, no habitual «ram-ram» da nossa frivolidade! Conversava-se como em «soirées» do Palace. Os Mosers descreviam o seu passeio de automóvel a Machico, o belo horrível da serra. Susana contava o último jantar da Palmeira em que debutara o novo cônsul americano: - Encantador como parceiro e como «flirt»… Vocês verão…(…)
«Ás três da madrugada Celeste de V. apareceu vestida como para uma festa. Chegara na véspera de Lisboa. Todos a rodearam. Queriam saber das greves e do preço dos vestidos e onde comprara aquele lindo chapéu. (…)
«Amanheceu. Todos tinham o ar cansado, envelhecido. Algumas senhoras polvilharam-se discretamente. Susana exclamou: - Para não metermos ainda mais medo de que o incêndio!
«A minha nevralgia torturava-me. Já nem pensava no perigo. Sentia um único desejo: deitar-me fosse, onde fosse, ter uma cama para descansar ou morrer
«Mas o vento continuava atirando o fogo para traz. Já mal se avistavam as chamas. Apenas uma coluna negra de fumo subia no horizonte. Foi opinião geral que podíamos, sem imprudência, voltar às nossas casas. Uma voz zombeteira: - a da Suzan observou: E, se nos der o susto outra vez, tornamos a fugir, não há nada mais fácil!
«Durante três dias ainda o «leste» continuou, os sinos tocaram a rebate, o fogo devorou as lindas serras da Madeira. (…) Porém tudo passa. Há quem pretenda que tudo volta também. Depressa, em frescas noites de luar ou de estrelas, nos terraços do Palace, onde novos idílios desabrocharam, esqueceu-se a longa, ansiosa noite» …

Luzia terminou a longa missiva confidenciando que o seu humor irrequieto e inconstante a solicitava cada vez com mais premência… «Entretanto, entramos no Outono, o formosíssimo Outono do Monte. Começam a abotoar as beladonas. Ao jardim azul vai suceder o jardim cor-de-rosa. Depois, em Dezembro, o jardim branco, sob a neve perfumada das azáleas… Mas, já o meu humor vagabundo me leva para longe outra vez. Onde estarei quando abrirem as beladonas? Donde evocará a minha saudade o brando aroma das azáleas?
«Partir! Mudar! Ver sempre novos horizontes novas terras! Ah! Como tu és feliz! Como nós te invejamos! – exclamam em coro, as minhas amigas.
«E eu não ouso confessar-lhes quanto lhes invejo a doçura de ficar»» …

Em 1936, noutro excelente livro intitulado «Almas e Terras Onde Eu Passei», Luísa Grande de Freitas Lomelino depois de afirmar que não vinha à Madeira desde há alguns anos, voltou a relatar mais algumas paisagens, descrições, e impressões sobre a ilha, terra querida da sua mãe, onde acabaria os seus últimos dias:
«Como o Funchal mudou desde que, há perto de vinte anos, eu deixei de habitá-lo. Dantes a «season» acabava mais tarde. Só em fins de Abril, Lady Stanford, Mrs. Blandy, Mrs. Faber e tantas outras felizes proprietárias das nossas lindas quintas resolviam declarar-se «home-sick», trocar os seus jardins, onde já dava flor a glicínia e abotoavam os jacarandás, pelo paquete da «Castle Mail» que as levava a Inglaterra. E com elas desaparecia também o alegre enxame de «Misses», vestidas de primavera, que faziam as delícias dos nossos rapazes, nas tardes de «tennis» e nas noites do Casino, quando depois da valsa – a harmoniosa valsa inglesa – gorjeavam, à luz do luar ou no mistério suave das estrelas, os seus musicais: - Oh! Yes…
«O Funchal caía então numa doce sonolência, embalada pelo monótono Uah! Uaah! dos carreiros e de que saía apenas, mal acordado ainda, para ir ver passar a procissão e comer os bolos da Felisberta, no Colégio em casa da Condessa de Torre Bela, em S. Pedro no Palácio da Condessa de Ribeiro Real, ou da janela dos Leais na estreita rua das Mercês… A cidade cheirava a incenso, a cera queimada, a rosas brancas… Das sacadas pendiam colchas de damasco escarlate ou amarelo. E até que desfilassem os santos, nos seus andores enfeitados, as confrarias nas suas opas vermelhas, os doces anjinhos, vestidos de seda branca, com asas que raras vezes se mantinham inteiras, arrastavam-se, pesadas e moles, as horas das longas, festivas tardes» …
Ligeiramente aborrecida e constrangida, Luzia observou que quando em fins Março se instalara no Hotel Savoy, ao contrário de antigamente, a maioria dos hóspedes já se preparavam para partir.
«Não tive tempo de demorar os meus encantados olhos naquela deliciosa inglesinha, descendente de Nelson – ignoro se também de Lady Hamilton – que em seus vestidos muito rodados, linda reminiscência das «criolines», parecia desprender-se dum quadro de Winterhalter.
«E quanto às felizes habitantes das nossas quintas: um «bridge» nas confortáveis salas, quase tão floridas como nos feéricos jardins, um «cocktail»… para não fazer triste figura, não mostrar que dato da era dos Afonsinhos … e good bye…pois estão de partida…
«Porém a cidade não tem de adormecer ao som monótono dos Uhah! Uhah! – que, de resto, mal se ouvem, abafados pelo terrível estrépito dos camiões – e de ir ver passar a procissão, no bom cheiro do incenso, da cera queimada, das rosas brancas…
«Um pequeno intervalo, apenas o necessário paras sacudir os tapetes, arejar os quartos, substituir o dispendioso cozinheiro italiano que, durante o Inverno, jurou a perda do estômago inglês, pelo António da Madalena que, com menos despesa e menos pompa, continuará a sua obra de extermínio. O sumptuoso maitre d´hotel pelo Manuel de Santa Cruz, e aí temos outra «season», a do verão, a dos banhos do mar, triunfo do pijama, que já tinha usurpado todos os direitos da camisa de noite e pretende agora destronar o vestido. A maioria das inglesas desembarca nessa exótica «toilette», que só troca pela tanga – pouco mais… ou pouco menos – para entrar, cada manhã, no banho e, algumas vezes à noite, por ligeiras «écharpes», para «flirtrar» nos terraços do Reid e do Savoy, ou para dançar no Casino. De resto, faz as suas visitas, as suas compras, os seus passeios, almoça, toma chá, de pijama… Uma ou outra mulher do povo, vendo-a passar, benze-se, murmura: - «Bendito seja Deus!». Mas o garoto – é dum imperturbável, dum desabusado, o garoto madeirense! – encolhe os ombros, limita-se a exclamar: - «Senhora Inglesa!». Como ele, eu há muito me familiarizei com todas as excentricidades de… senhora inglesa e, manda a verdade, acrescentar, que o domínio do pijama não se estende apenas através do Império Britânico; como o bolchevismo, ameaça invadir o mundo inteiro…Não tarda que o encontremos a passear no Chiado. Ah! fossem todas as que o adoptarem como aquela deliciosa, quebradiça boneca, esquisita japonesice que uma manhã vi surgir no jardim, de volta do banho, com o cabelo húmido ainda, fresca como a flor que o orvalho beijou e ninguém mais do que eu, cantaria os louvores do pijama. Mas há também as velhas, há sobretudo as gordas que, aos meus cegos olhos, tomam proporções terríveis de enormes monstros cabeçudos…
«E não ficam por aqui os aspectos desagradáveis desta «season» de banhos de mar e viagens a preços reduzidos. Graças aos últimos, temos a invasão do inglês de segunda classe – o que há de mais grosseiro e arrogante na espécie – que almoça em trajes menores e à sobremesa, com a maior sem-cerimónia, nos atira ao nariz o fumo do seu cachimbo» …

Perante tamanhas mudanças, Luzia apressou-se a trocar o Funchal de Verão pela frescas sombras do Monte, que as suas amigas de Lisboa conheciam bem, pois todas tinham ouvido falar que numa das suas aristocráticas quintas morrera um Imperador; embora confundam, constantemente, a Madeira com os Açores «e até com São Tomé e Príncipe… Para elas é tudo a mesma coisa, tudo… a «ilha»! Que eloquência, que paciência tenho gasto, em vão aliás, junto das alfacinhas… (…)
«Mas, também o Monte mudou – e quanto! – desde o primeiro Verão que em pequena aqui passei, numa deliciosa quinta que as hortênsias – os novelos, assim se chamam na ilha – vestiam de azul celeste. Vinha-se em carro de bois. A viagem levava pelo menos, duas horas e, se era pitoresca, muito tinha de impressionante, de aflitivo também, assistir ao esforço dos pobres animais para galgarem a péssima, íngreme calçada.
«- Cá p´ra mim, Muriano, cá p´ra mim Bonito...«Bonaito»! Ah, Mariano e «Bonaito» não devem ter saudades desses longínquos tempos! Foram decerto os primeiros a regozijar-se quando apareceu o pequeno comboio que, entre verdura e flores, nos traz ao Monte. Quase ao mesmo tempo surgia, tão maravilhosamente belo, como se o tivesse criado a varinha duma fada, o parque…E abria o Monte Palace que, apesar do seu nome com pretensões cosmopolitas, guarda um delicioso encanto patriarcal, um doce aroma de província. (…)
«Tudo se transformou. O Monte perdeu completamente o seu aspecto de paraíso inacessível. Fizeram-se estradas para os automóveis. Há uma carreira de «autobus». Há o magnífico Hotel Belmonte, donde escrevo, muito superior a todos que conheço em Portugal e, sem dúvida, o melhor da Madeira.
«Daí lhes escrevo, num confortável quarto onde tudo é fino, de bom gosto, desde o tapete cor de cereja até ao linho dos lençóis. As janelas estão abertas sobre o jardim, de que se despedem as rosas. As hortênsias – glória do Monte – trocaram o seu vivo azul por um verde, levemente manchado de roxo. Mas estão em flor as dálias, as begónias, os crisântemos… E não tardam as beladonas estendendo sobre os campos, sobre as quintas, o seu manto perfumado. Para lá do jardim avisto as densas sombras do parque, adivinho os misteriosos cantinhos onde responde, à doce voz dos pássaros, a cristalina voz das fontes…
«Lisboeta gentil, como eu queria ver-te subir a larga escadaria que leva a esses quietos, idílicos retiros! Como eu queria persuadir-te de que, mais perto e por preços menos dispendiosos do que os da Suíça, a montanha da Madeira te estende os seus floridos braços».

Em 11 de Abril de 1931, com a habitual ironia e denunciando uma visão aristocrata de mistura com leve simpatia pela ditadura que tinha conquistado o poder no Continente, Luísa Grande Lomelino narrou a um confrade de Lisboa, as incidências e o ambiente que viveu durante o período da Revolução da Madeira; notas que constituem, sem dúvida, um interessante documento histórico, que até hoje os historiadores madeirenses não têm prestado a devida importância.
Na Quinta da Palmeira, onde se refugiara, a escritora comentou: - «havia rosas e paz nesta linda ilha, quando lhe escrevi do Savoy. Ai de nós! Onde estão as rosas, para onde foi a paz? Vento e chuva torrencial esfolharam as primeiras… - Essas não tardarão a reflorir: já as roseiras abotoam… - Quanto à segunda… oh! Imprudente ditadura, que aqui pôs tantas cabeças de motim. É verdade que lhes juntou a remessa de um Comissário, com abundância de soldados e metralhadoras, destinados a servirem de papão, mas os soldados e as metralhadoras embirraram com o Alto-comissário, acharam mais simpáticos os deportados – Le coeur a des raisons … (…) Decidiram prender o Alto Comissário, (…) e já se vê, apoderaram-se do lugar, do mando, de todas as variadas atribuições da autoridade engaiolada.
«O povo, o bom povinho desta ilha, sempre prudente, desconfiado, começou por encolher os ombros, lavar do caso as suas mãos. – Não era nada com ele; era lá com a tropa de Lisboa! – Mas fizeram-se comícios. A sereia cantou… Anunciou mil prosperidades, todos os bens deste mundo e do outro. O povinho ouviu, abriu a boca até as orelhas, num pasmo feliz, (…) e acreditou.
«Toda a ilha está com os revoltosos. De toda a parte chegam voluntários. Todos ajudam. Todos confiam. Entretanto, passado o primeiro fogacho, veio também a inquietação. Ninguém sabe o que será o dia de amanhã, se esta Madeira, tão linda, sob o seu manto de «bougainville», sob as suas grinaldas de glicínias, sorrindo à promessa das rosas, terá de sofrer as consequências terríveis de um bombardeamento.

Inquieta com as visíveis preparações para a luta, Luzia mencionou que após as autoridades revolucionárias terem começado a deter os automóveis particulares, e como a maioria dos seus amigos morasse fora da cidade, aceitou a hospitalidade que lhe ofereceu uma amiga inglesa; tendo saído do «Hotel Savoy» para ir residir na «Quinta da Palmeira», afastada do centro do Funchal e debaixo da protecção da bandeira inglesa.
Ali havia flores, livros, magazines, cães, e até se jogava «bézigue» ao canto do fogão. «Rodeia-me o maior conforto: toda a elegância, harmonia e método dos hábitos ingleses. Os H. praticam a hospitalidade da mais agradável, inteligente maneira: dando-me a impressão que estou na minha casa» …

Três dias depois, noutra carta endereçada ao mesmo amigo, a escritora comentou que dada a situação belicosa, não tem recebido nem despachado correspondência. «Decididamente é o bloqueio que começa… Antes ele de que um bombardeamento, bem sei, mas…Oh! Eterno «mas» de todas as coisas da terra!
«Mrs. H. não se lamenta. Nesta bélica ocasião, prefere estar na Madeira. Quer entrar em cena, representar um papel notável, mostrar o seu grande amor pela raça portuguesa, concorrer para que o país volte à Constituição, à normalidade – falou todo o tempo em Constituição em normalidade! – Já se inscreveu na Cruz Vermelha… quanto mais não seja para despejar os baldes, contando que se dedique por esta raça, a melhor do mundo… Ah! Mrs. H., que desacato ao British Empire! – E acha que todos deviam imitá-la. (…)
«De resto a Cruz Vermelha já conta com um importantíssimo número de adeptos. E as escoteiras não param. É raro o dia em que duas ou três não vêm à Palmeira. Aceitam um cocktail, oferecem os seus serviços… Tudo apressadamente, não devem demorar-se. Dum momento para outro, o que pode acontecer! E prosseguem na sua alegre azáfama. - «Nunca me diverti tanto!» - confessava-me ontem uma delas, a minha afilhada Vera, muito elegante, muito bonita, no seu uniforme azul. Acredito, acredito… Mas quando e como acabará este divertimento?! That is the question… um pouco angustiosa, para quem não é uma escoteira de vinte anos, ávida de movimento, de imprevisto!
«As tropas do Governo continuam no Porto Santo, onde o dreadnought britânico vai constantemente, decerto na esperança de levar ou trazer o raminho de oliveira…
«Ontem espalhou-se… isto é, espalharam os revoltosos, que Lisboa estava em pé de guerra também. Felizmente, parece não ter fundamento a notícia.
«Entretanto, o «Jornal» passou das mãos monárquicas do meu amigo Luís Vieira de Castro, para as mãos democráticas do sr. F. C. Na mesma página em que se anunciavam, com grandes letras, os escândalos da Democracia, anunciam-se agora, com letras ainda maiores, os da Ditadura…
«O dr. X, no auge do entusiasmo, abraça os madeirenses, felicitando-os por terem nascido neste heróico torrão, que vai salvar a pátria! Um reservista, chamado ao serviço activo – para restaurar a Constituição e a normalidade, tão necessárias à ventura de Mrs. H. – exclama desconsoladamente: - «Ai! O pior são as botas!» - Como eu simpatizo com esse grito de alma! Desde que aportei a esta formosa ilha – que vai salvar a Pátria! – ainda não deixei de ter dores nos pés!
«E tudo isto é como a onda que quebra de encontro às altas muralhas duma fortaleza, como um eco de coisas que se passam longe, muito longe, na Rússia, na China…
«A Palmeira continua a sua calma existência, entre rosas e pássaros, entre vôos de pombas e doces murmúrios de ramagens…

Dias depois, Luísa Grande Lomelino escreveu outra carta para Lisboa, comentando que apesar de já terem passado três semanas de instabilidade revolucionária, em nada se tinha alterado o agradável ram- ram da sua fácil existência. «Continuamos a jogar o«bridge» todas as tardes e o «bézigue» todas as noites. Eu já pretendi entrar pelos «cocktails», em obediência à moda e seguindo o denodado exemplo das minhas parceiras madeirenses, mas de cada vez que me meto nessas altas cavalarias, apanho uma enxaqueca de respeito! No meu tempo, o bom tempo em que o Funchal ignorava os prazeres revolucionários, não estavam também à moda as bebidas de guerra e, como diz a sabedoria das nações, certo «bicho» velho não aprende…
«Enquanto nós, as de «pé pesado», jogamos, as de «pé leve» dançam. É inverosímil o que se tem dançado durante a revolução! No casino, a bordo do «London», em casa duma senhora inglesa… Nos intervalos do baile, há partidas de «tennis». De «murder game», excursões, «pic-nics». E há o «flirt» - amor em botão, amor que ainda não tem espinhos.
«O povo sofre com falta de trabalho e falta de pão, mas sofre cheio de entusiasmo e de esperança, encantado pela importância que lhe dão…que fingem dar-lhe, julgando-se o único objectivo destes espertos – espertíssimos – senhores, gostando de ir aos comícios, onde tudo se diz em seu nome – Ah! Pobre, querido povinho da Madeira, que ainda não sabia felizmente para ele, o que era ser soberano! – Porém, forçoso é confessar, nem tudo são rosas… O pronunciamento traz alguns maus bocados. Há os que têm medo. Os que têm passado por horrores de medo: os pobres galuchos, com carinhas ingénuas, espantadas e aterradas, de crianças que ouvem o conto do Papão; há os que choram de dia e de noite… há os que fogem tomados de pânico – entre esses, uma senhora doente morreu na maca em que a transportavam!
«Agora como «bouquet» final, espera-se o bombardeamento da cidade. - «Não passa de amanhã; começa logo ao romper do dia! – anunciavam ontem os boateiros… Também os há na Madeira…
«Mas, precedidas pelo lindo compasso de minuette, já soam as dez horas e ainda não se ouviu um tiro»!

No dia 29 de Abril, já muito alarmada com a gravidade da situação Luzia tornou a escrever ao sei amigo de Lisboa, comentando:
«Hoje… amanhã… E os dias passam e os nervos não podem mais! Acabou-se a nossa doce inconsciência. É já impossível viver estranhos, alheios, ao drama – comédia-drama – que se está desenrolando…ou antes arrastando!
«Desde que chegaram os navios de guerra, anuncia-se, a todos os instantes, o bombardeamento. No dia vinte e seis, quando jogávamos tranquilamente o «bridge», numa das lindas quintas da Madeira – propriedade inglesa, já se vê – três aeroplanos voaram sobre a cidade, espalhando proclamações aos soldados, e ao povo. Grande excitação na elegante sala! Todos correram às janelas… Do jardim, onde um grupo juvenil se entregava aos prazeres do «tennis», trouxeram-nos essas proclamações. Achei-as sensatas, claras. (…) Mas nem os soldados de Lisboa se deixaram convencer… Responderam com um terrível «vivorio» à República e um «morrorio» à Ditadura! Quanto ao povo, fugiu desvairado, gritando que era peste mandada pelo Governo, para destruir a Madeira! A vinte e sete, voltaram os aeroplanos e houve uma tentativa de desembarque em Machico. Acabou o dia com a participação oficial do bombardeamento, às cinco da tarde de ontem. Escolheu-se uma zona neutra destinada aos estrangeiros. Os revoltosos fizeram mais dois comícios para que, neles, o povo… soberano, decidisse se queria render-se ou combater. O povo não deve ter entendido grande coisa do que disseram os oradores, mas ouviu duas ou três palavras retumbantes de som – embora talvez um pouco ocas de significação – que lhes subiram à cabeça. Escolheu o combate. Vencer ou morrer! ...
«Ah! Luís, que maravilha de tarde! Nos lindos jardins da Palmeira, as pombas voavam sobre um macisso de açucenas, os pavões abriam as caudas sumptuosas entre os canteiros de cinerárias, uma imensa paz transparente descia do céu muito azul e, às cinco horas, os bombeiros passaram, tocando uma campainha para avisar o povo de que não viesse à janela nem à rua. Ia começar o bombardeamento. Mulheres choraram, crianças gritaram… Todos nós, de binóculo em punho, fixávamos ansiosamente o mar, azul, transparente como o céu. Vimos o «Vasco da Gama» tomar posições que pareciam de ataque. E, logo depois o «Carvalho Araújo»… Não tardava o bum, bum! Que Deus se compadecesse da nossa pobre Madeira! Um grande minuto passou, mais cinco… mais dez… meia hora, uma hora… «Vasco da Gama», dear old Pimpão, como lhe chama o Harry, a nada se movia!... Alguém chegou com a notícia de que o Governo tinha resolvido dar mais duas horas, para que os rebeldes se rendessem… Ao cabo dessas horas, ouviu-se de novo a campainha dos bombeiros. Voltou a ansiedade… Mas outra vez, minutos e horas passaram no mesmo silêncio! E a noite caiu, serena, como tantas noites da Madeira» …

No dia 1 de Maio, Luzia voltou a escrever da Quinta da Palmeira para o seu amigo continental, informando que os confrontos directos já duravam há três dias, que tinham tirado os telefones à população e o único jornal disponível era o dos revoltosos. Ao mesmo tempo multiplicavam-se os boatos.
«Há mortos, centenas, milhares de mortos! Não há um único morto…Batem-se entre os rochedos do Campanário, onde as tropas de Portugal encontrarão um fim horrível. Batem-se aqui mesmo…Já vêm a caminho! Vão bombardear a cidade, etc. etc. E os dias passam…E ao hospital, até ontem chegaram apenas dois feridos! Uma coisa é certa, porém: os canhões não se calam. Esta noite, com um luar maravilhoso, a sua voz fazia pavor! Pavor que o mistério aumentava… Pelo menos a mim parecia mil vezes preferível saber a verdade, por muito dolorosa que fosse.
«Como a sorte é cheia de disparates e se compraz numa constante ironia, deixei o Savoy que todos julgavam muito exposto, caso houvesse um bombardeamento, e finalmente esse hotel faz parte da zona neutra, onde se refugiaram os estrangeiros e todas as pessoas que não desejam travar conhecimento com as granadas lisboetas; e está guardado por marinheiros ingleses, armados até os dentes.
«Ontem de tarde, pelas incertas notícias, a Palmeira não oferecia grande segurança. Vários automóveis com fugitivos – os mesmos que, há dias vimos subir a caminho das quintas do Monte – desciam rapidamente… Mas os H não tencionam sair de casa e eu fico com eles. Será o que Deus quiser… (…)
«Bum, bum, bum! – Quantos morrem, quantos vão morrer, nesta manhã tão bonita de Maio, feita para amar a vida, para amar as rosas…(…) Decididamente sinto-me tão enervada que não posso continuar. Até amanhã se, se» …

No dia seguinte Luzia torna a escrever ao seu amigo já com outro espírito e certa euforia…
«Hurrah pela Ditadura! Depois duma noite de pesadelo, ouvindo os canhões tão perto que abalava toda a casa, veio a boa notícia da entrada das tropas fiéis e, há pouco, a notícia, ainda muito melhor, da rendição dos revoltosos…
«A manhã está… de derrota. Que tristeza de céu, que nuvens tão pesadas, tão negras! Como o silêncio oprime, pesa, depois da «vitória» e… «morrório» desta última semana. Até os pássaros se calaram… para mostrar o seu desagrado, talvez… E eu que queria que tudo se enchesse de sol, de gorjeios, de flores, que tudo festejasse a vitória, ou, pelo menos, a paz»!

Finalmente, Luísa Grande Lomelino escreveu uma última carta, onde patenteou a sua simpatia pelas forças continentais, mas também a animosidade dos madeirenses contra Lisboa, muito amor pelo povo miúdo da Madeira, e um profundo desprezo pelos oportunistas que sempre pululam após as trágicas derrotas.
«A Madeira, vencida mas não convencida, (…) assistiu, ontem, num silêncio de enterro ao desembarque das tropas vencedoras. Horas antes, em Machico, Botelho Moniz, seguido apenas por meia dúzia de soldados, inscrevera mais uma página de oiro na história das gloriosas temeridades. Outros ainda, heróis obscuros, heróis de que nunca se saberá o nome, acabavam de sacrificar a vida, no perigoso cumprimento do seu dever.
«E quanta gratidão – escusam de protestar, eu escrevi, eu repito: gratidão! - deviam os que assim se calavam rancorosos, revoltados, aos navios e tropas do governo, pela maneira tão prudente, tão humana, com que desempenharam o difícil cargo de… metê-los na ordem!
«Mas esse desfilar de soldados – soldados de Portugal que, como tudo o que vem da Metrópole, inspiram desconfiança e medo ao madeirense – representava o desmoronamento dum maravilhoso castelo de cartas… Iam-se por água abaixo tantos bens anunciados, prometidos, a farinha, o milho mais baratos, a vontade do povo para cá, a vontade do povo para lá!
«Sim, era um enterro que passava e o mais triste, aquele de que mais dificilmente alguém se consola: o enterro duma ilusão.
«Entretanto, os camaleões da política, os que em todos os acontecimentos só procuram e diga-se de passagem, quase sempre encontram, o seu proveito, há poucos dias ainda, partidários entusiásticos, intransigentes, do pronunciamento, fazem gravemente o elogio do Governo, esperando que ele saiba mostrar-se à altura da situação - «É preciso apurar responsabilidades: andam por aí muitos revolucionários encapotados… Castigar com a devida energia… Reclamamos ditadura, não admitimos «ditamole».
«Os navios de guerra ingleses abarrotam de fugitivos. Até os há encarrapitados nos mastros do «London», diz-se … mas eu não quero acreditar… Chassé croisé… Eterna contradança da vida! Já o…outra vez alto-comissário reentrou no Palácio de São Lourenço, já os chefes da revolta e outros oficiais que como eles se renderam com honra, foram ocupar os seus menos confortáveis aposentos, no Lazareto... (…)
«E enquanto se desenrolam tão inesperados acontecimentos, tão rápidas, quase inverosímeis mudanças de cenário, o soldadinho do campo, o soldadinho improvisado, que nunca entendeu porque lhe puseram ao ombro o peso da espingarda, porque lhe entalaram os pés na tortura das botas, ri, com um largo riso, que todo o seu rosto ilumina…
«Não sabe, nem procura saber, de que lado estava a razão. Aos que lhe perguntam com ironia: - Quem ganhou? – responde simplesmente; - Ganhou quem tinha mais força… E - lição para tantos! Acrescenta – Dizem que poucos morreram … Pena foi que morresse alguém!
«Acabou o pesadelo. Vai voltar à sua aldeia, onde tudo o chama e acolhe, desde a bênção da mãe, aos olhos da namorada. Tão leve como o corpo sente o coração. Não causou perca nem dano, não quis mal a ninguém. Ah! Rica, bela coisa, livrar-se da caserna, dizer adeus à cidade! Para outras bulhas não o chamem… Quem as arme que as desarme. Haja paz, haja concórdia… E passem por cá muito bem!

2 comentários:

  1. Só hoje li este post sobre Luisa Grande. Sempre me interessou porque a minha mãe leu-a muito. Pouco sabia dela. Vim aqui encontrar bastante... Sirvo-me de umas passagens no meu blog, num texto sobre ela... Espero que me desculpe. cito o seu blog, é evidente.
    Parabéns!
    o falcão

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  2. Excelente trabalho sobre a escritora Luzia. Mais uma notável de Portalegre.
    Tal como a MJFalcão!
    Obrigado.
    JDACT

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