segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

As Quintas da Madeira na Obra de Maria Lamas


Maria Lamas dedicou um longo capítulo do livro que estamos a recriar ao estudo das Quintas Madeirenses, que eram espaços de sonho, onde em meados do séc. XX, ainda pairava um cenário romântico nas habitações, nos recantos ajardinados, no campo de croquet abandonado, e nas ruas a que as raízes das velhas árvores altearam o empedrado miúdo e redondinho. Vivendas que vêm doutros tempos e ficaram velhinhas, sem que se lhes tivesse alterado a suavidade e beleza. Quintas da Madeira! Nem grandes extensões de terra, nem importantes explorações agrícolas, nem estilos variados na fachada da casa e no arranjo dos jardins, singelamente bordados com relvados, canteiros e árvores frondosas com o musgo a crescer nos seus troncos. Influências inglesas, sem dúvida, mas tudo impregnado do ambiente da ilha, todas diferentes e todas semelhantes no seu estilo local. São ainda sinal de riqueza, de festas elegantes, e de convívio seleccionado; as mais antigas têm capela privativa; e cada uma com a sua história, o seu período áureo, as suas alternativas de esplendor e penumbra, quando não de decadência.

Dentro das quintas do Funchal, Maria Lamas começou por desfolhar a Quinta do Til, edificada em meados do séc. XVIII, num caminho do Monte, por um antepassado do Conde de Carvalhal, com a intenção de satisfazer os desejos da noiva – uma loira miss que queria viver fora da cidade.
O casamento não chegou a realizar-se, e a casa ficou incompleta. Na parte então construída, os primeiros moradores foram Alexandre e James Gordon, refugiados da rebelião escocesa de 1745, que se tornaram opulentos comerciantes ligados ao vinho Madeira. Sobre eles, conta-se que no tempo em que os protestantes não podiam ser enterrados na ilha; quando faleceu o James, o seu irmão, após simular um funeral marítimo, sepultou-o no que restou do vetusto Palácio Esmeraldo, então sede da firma Gordon. Décadas depois, quando esse edifício foi barbaramente demolido, perante o espanto geral, as suas ossadas foram aí encontradas.
A quinta pertenceu depois à família Hinton, e mais tarde foi comprada e concluída pelos Miles. Nos meados do século XIX, constituía uma moradia onde o calor da vida familiar pulsava num autêntico museu, onde estavam reunidas valiosíssimas obras de arte, que iam do mobiliário à pintura, à escultura e à gravura; das porcelanas e cristais preciosos aos relógios, tapeçarias e objectos variados – tudo num gosto seguro e seleccionado.
Entre as luxuosas residências da Madeira - e muitas são!- esta ocupa um lugar de destaque, comparável ao das mais belas e categorizadas habitações particulares de qualquer parte do Mundo. Nos jardins, apesar da influência britânica, respira-se uma fascinante atmosfera madeirense, pois são bem locais as flores maravilhosas, as cascatas, os caramanchões, os recantos ensombrados, e a frescura diluída na aragem.
Ainda existia o decrépito, mas majestoso tronco do velhíssimo til que deu o nome à quinta e à própria rua, que foi aberta nas suas proximidades. E lá está ao longe o mar, sensação de ilha envolvente, e sugestiva de nostálgicas distâncias.

Segue-se o encanto da escritora pela Quinta da Achada, primitivamente, uma velha casa, rodeada de árvores, mandada edificar por uma família portuguesa e habitada depois por ingleses, portugueses e até por um Bispo que ali passava o verão. De todos os que ali residiram, a romancista salientou o general Beresford, que após obras de restauro, aí teve a sua morada durante a ocupação da Madeira por tropas inglesas, na altura das Guerras Napoleónicas; conservando-se ainda na sala de jantar, um móvel que lhe pertenceu, misturado com outro mobiliário ao gosto inglês, muito em voga nas moradias antigas do Funchal, e na sua maioria copiado pelos habilíssimos marceneiros e entalhadores da ilha.
No período em que Maria Lamas visitou a mansão, os seus arredores já eram populosos, mas o maciço verde do seu arvoredo destacava-se entre os telhados do casario e avistava-se de toda a parte, assinalado por um eucalipto – o mais alto da ilha - que ultrapassava cinquenta metros, sendo verdadeiro marco histórico, pois era um ponto de referência para os barcos que demandavam o Funchal, indicando-lhes precisamente o meio da baía.
Muitas outras formosas árvores abraçavam o conjunto, como a célebre magnólia que crescia ao largo da casa, tão perto da varanda, que a sua folhagem se inclinava sobre ela, e onde foi vivido mais um romance, nesta ilha de idílios luso-britânicos, quando um madeirense miguelista, apaixonou-se por uma inglesinha liberal; namoro, obviamente, muito contrariado pelas famílias, mas que a astúcia dos namorados torneava, sempre que o jovem saltava o muro da quinta, no silêncio da noite; e a magnólia lá estava, acolhedora, e discreta... Instalado nos seus ramos podia o rapaz conversar longamente com a loira amada que o esperava na varanda …
Já no século XX, um incêndio destruiu a parte central da casa e ainda o recheio, composto por valiosíssimas loiças da China, do Japão, da Companhia das Índias e doutras paragens, trazidas em retorno, pelos navios que transportavam os vinhos para o Oriente.
A residência, com as suas linhas sóbrias e tapa-sóis verdes, conserva a fisionomia madeirense e os seus jardins têm recantos de um bucolismo inefável. Elia Lindon de Manier–Vinard, que nasceu nesse edifício e daí partiu para a Manchúria, para ser enfermeira na Primeira Grande Guerra, morou longos anos em Paris, onde passou o doloroso período da Segunda Guerra Mundial, mas nunca esqueceu a quinta do seu encanto; e quando, em meados do século XX ficou viúva, voltou à ilha, recordando sonhos e realidade passadas, no mesmo cenário em que foi jovem, sempre rodeada dos seus livros, que ela própria encadernava com gosto de artista, sentindo e confessando que a Quinta da Achada era o lugar que mais amou na Terra.

Outra das belas quintas do Funchal, segundo Maria Lamas, era a Quinta da Palmeira, cuja casa foi construída em finais do séc. XVIII, em terrenos duma capela vinculada, situada na freguesia do Monte. Teve muitos possuidores, deu lugar a vários pleitos, e foi vendida em hasta pública, até que, em 1908, seria comprada por Harry Hinton, que aumentou a habitação, e aformoseou os jardins, onde se salienta a exuberância, a variedade e colorido das flores; trepadeiras e trepadeiras, dos mais diversos matizes, a revestir paredes e a engrinaldar rochedos; o empedramento do chão; as escadinhas suaves, mais ondulação que degraus; e as palmeiras entre as quais aquela muito imponente que lhe dá o nome.
Nesse maravilhoso cenário, onde o peculiar colorido da Madeira refulge na luz, com mutações constantes da atmosfera, as bananeiras prolongam os jardins em campos de cultura, e ao longe o mar – horizonte fantástico, o sempre vago e sempre diferente mar da Ilha.
Enquadrada neste panorama encantador, encontra-se uma janela da casa que foi habitada por Cristóvão Colombo, quando ele esteve na Ilha, a qual foi adquirida por Harry Hinton, no época em que no centro do Funchal, demoliram a habitação medieval de que fazia parte.
A escritora lembra ainda que o edifício da quinta possui uma fachada curiosa, de linha arredondada que o distingue de todas as outras. Interiormente é de uma grande riqueza, com nítido carácter britânico, embora incluindo algumas obras de arte portuguesa.

A Quinta do Monte, construída na primeira metade do séc. XIX por James David Gordon, foi para Maria Lamas, uma das mais formosas quintas funchalenses, com «salões ricamente mobilados, onde se admiram telas valiosíssimas de Rubens, Corregio, Guercino, Pietro Cardona, Della Notte, Gutilschi e outros pintores famosos», assim como magníficas reproduções de esculturas da Antiguidade, em terracota, bronze e mármore.
A quinta também ficou célebre por aí ter morrido o Imperador Carlos da Áustria e a Imperatriz Zita, assim como, por outras pessoas famosas lá haverem residido, «sendo sempre um centro de vida elegante e com brilhantes tradições na alta sociedade do Funchal».
Atravessada por uma ribeira com as suas formosas quedas de água, «tem vários jardins e relvados de traçados diferentes, com tanques e cascatas, uma frondosa mata e mirantes soberbos, principalmente a Torre de Malakoff, donde se avista a cidade, a baía, e a vastidão infinita do mar».

Ainda no Monte, Maria Lamas maravilhou-se com a Quinta Canavial, mandada construir, em 1896, pelo Conde de Canavial; um dos vultos mais notáveis da Madeira. Doutorado em medicina pela Universidade de Montpelier, veio a ser dos maiores, senão o maior médico do seu tempo, nesta ilha; destacando-se igualmente como professor, cientista, jornalista, escritor, político e industrial. O Conde foi também uma figura brilhantíssima da sociedade madeirense, tornando-se proverbial o bom gosto e galantearia com que no Monte, organizava as suas festas e recebia os convidados.
Na quinta, além duma linda capelinha, de construção recente, que se ergue junto de um dos portões da entrada, havia jogos de água – miniatura dos de Versalhes – que produziam efeitos deslumbrantes com uma fantástica iluminação de azeite em vidrinhos de cores; assim como uma furna com o fundo revestido de feijoco, onde se realizavam animados almoços e convívios.
São ainda encantadores, apesar do ambiente levemente melancólico, alguns horizontes que dali se abrangem – sobretudo o mar, para lá da cidade, até longe, longe, longe... O passado deixou em tudo o seu sinal: na casa com as ombreiras das portas e janelas feitas de troncos de pinheiros; no irreconhecível rink de patinagem – o primeiro que houve na ilha; na furna envelhecida; nas próprias amoreiras – reminiscência da criação de bichos-da-seda, que foi um dos entusiasmos do Conde de Canavial.

Maria Lamas descreve depois a Quinta da Alegria, construída nas serras de São Roque, sobranceiras ao Funchal, com amplos terrenos de cultura amanhados por muitos caseiros, e ambiente rural em que só a pequena casa de veraneio, com o seu terreiro de mimos justifica a tradicional designação de quinta. Essa velha casa da família Bolger teria sido edificada em 1770, mas a capela a que estava vinculada, foi construída em 1608.
A paisagem é deslumbrante, não em si, mas pelo que dali se avista, da montanha e do mar. Não lhe falta, contudo, beleza própria. Na Primavera as beladonas são como um tapete fantástico, de todos os tons de rosa, sob a ramaria do arvoredo; sugestão de floresta com o seu pavilhãozinho rústico, este acolhimento despretensioso da natureza, esta sensação de coisa intacta, sadia e prometedora. O mar é quase irreal, imensidade onde reflecte o céu: azul, cinzento, claridade sem cor, escuridão... Imensidade onde passam navios, e pela noite se acendem os barcos de pesca.

Seguidamente, a escritora queda-se impressionada pela Quinta de São João, edificada nos princípios do séc. XVIII pelo morgado de Berenguer, em puro estilo D. João V, com a sua capela, evocando, em plena ilha da Madeira, as grandes casas senhoriais do Norte de Portugal. O morgadio de que fazia parte não resistiu ao fausto e à prodigalidade de várias gerações», pelo que o último morgado morreu absolutamente arruinado, acabando a quinta por ser vendida ao austríaco Faber, que a retalhou em duas. Na mais pequena construiu a sua residência a que chamou Quintinha de São João; e na maior, que incluía a antiga habitação, conservou o primitivo nome, sendo comprada depois pelo Dr. Rui Bettencourt da Câmara. Este ilustre madeirense, após profundas modificações, tornou-a numa das moradias mais sumptuosas do Funchal, não apenas pelo edifício, mobiliário, tapeçarias e decoração interior, como pela riquíssima colecção de quadros, e a biblioteca, com milhares de livros, alguns raros e de excepcional categoria, sendo igualmente de grande valor os manuscritos, ali reunidos em anos de paciente e competentíssima investigação histórica.

Maria Lamas também se encantou com a Quinta das Angústias, construída à beira-mar, sobre as penedias que dominam a Pontinha. Casa vastíssima e luxuosa – ambiente perfeito do séc. XIX – com belos azulejos na varanda que se abre, ampla, para o Sul; flores em profusão, capela de invocação a Nossa Senhora das Angústias, e parque maravilhoso onde as árvores assumem beleza e majestade fora do vulgar. Percorrer as ruazinhas musguentas por entre os canteiros deste jardim dormente, assomar à balaustrada que olha o mar e a cidade no seu poético abraço – eis uma sensação total de quinta madeirense, impregnada de romantismo.
A residência teve sucessivos donos, entre os quais a célebre exportadora de vinho Dª. Guiomar, que aí mandou construir um famoso mirante; e Nicolau de La Tuliére que também fez importantes obras e arranjos. Na segunda metade do séc. XIX, o Conde de Lambert, ajudante de campo da imperatriz da Rússia, comprou a quinta e deu-lhe o seu nome, depois de aformosear a casa e dotá-la com o máximo conforto. Era uma pessoa triste e muito misteriosa, constando que num litígio com um general russo, tiraram à sorte qual deveria suicidar-se, cabendo ao militar, que cumpriu o trágico acordo, deixando, porém, Lambert amargurado, sem sossego e tão amargurado que veio isolar-se na Madeira. Por sua morte a condessa vendeu o edifício a uma família madeirense, voltando a chamar-se Quinta das Angústias.
È conhecido, que nos séculos XVIII e XIX, a ilha da Madeira significava terra de esperança para os tuberculosos e outros doentes do corpo e da alma, assim como aliciante atracção para aventureiros amantes de diferentes e exóticos horizontes. Deste modo, muito antes da palavra turismo ser introduzida no vocabulário internacional, já demandavam a Madeira pessoas das mais elevadas categorias, vindos dos quatro cantos da Europa, alguns deles procurando a Quinta das Angústias, num amálgama de agitação e desejo de repouso, de luxo e pobreza de felicidade, de comodidades e incurável desconforto íntimo, de beleza e visões de morte. Dentre essas personalidades, lembramos o duque de Leuchtenberg, filho do príncipe Eugénio Napoleão e genro do czar Nicolau que, em 1849, vinha doente, razão da sua viajem em busca de alívio neste clima privilegiado, o qual durante um ano visitou as belezas da ilha, e com a sua numerosa comitiva, deu à mansão muita animação e vida faustosa, acabando por regressar à sua terra rejuvenescido e curado.
Em Agosto de 1852, desembarcaram no Funchal a Imperatriz Amélia do Brasil, viúva de D. Pedro IV e a filha, Maria Amélia, que com o seu sorriso de bondade, logo cativou a multidão que as esperava e a quem acompanharam, em imponente cortejo até aos portões da Quinta das Angústias. A princezinha, com apenas vinte e dois anos, vinha muito debilitada pela tuberculose, e após cinco meses de agonia, apesar do seu gosto pelo estudo, pela arte e pela vida que lhe fugia de instante a instante, acabou os seus dias, com os olhos presos ao mar imenso que tanto amava.
A Imperatriz nunca esqueceu a Madeira e, agradecida aos seus habitantes e também em memória da filha querida, comprou os terrenos fronteiros à Quinta das Angústias e aí ergueu um edifício de grandes proporções e linha elegante, rodeado de jardins bordados com dragoeiros e árvores exóticas ao gosto das herdades da Ilha, para acolher, rodeados de beleza e conforto, os pobres atacados da mesma doença que lhe arrebatou a filha.
D. Amélia não chegou a ver a obra concluída, mas antes de morrer, encarregou a sua irmã Josefina, rainha da Suécia, de completar a realização e assegurar de forma definitiva a manutenção do hospício, com a direcção das Irmãs de S. Vicente de Paulo. A Imperatriz ainda fez votos de criar um orfanato para crianças pobres, desejo realizado pelas referidas religiosas que construíram, ao lado do hospício, em edifício que ainda está aberto, recolhendo elevado número de crianças.

Sempre arrebatada pelas belezas do arquipélago da Madeira, a escritora relata as particulares e o passado da Quinta Vigia, situada à ilharga da Quinta das Angústias, que na primeira metade do séc. XIX pertencia ao britânico Richard Davies, e estava ladeada pelas Quintas do Pavão e Bianchi, todas elas dadas de concessão à empresa dos Sanatórios, de que foi concessionário o príncipe alemão Frederico de Hoenlohen, e que acabaram por constituir uma só propriedade do Estado, aberta ao público, após complexos litígios fomentados pelos ingleses.
A situação da Quinta Vigia, numa espécie de planalto rochoso à beira-mar; a magnificência dos seus parques e jardins; e a categoria das pessoas que as habitaram – fizeram dessas mansões, lugares célebres da ilha, ligados à fama mundial das suas formosuras e à proverbial suavidade climatérica .
Esta magnífica herdade foi residência da Rainha Adelaide, viúva de Guilherme IV da Inglaterra, que em 1857, aconselhada pelos médicos, chegou ao Funchal, com um numeroso séquito real – cerca de cinquenta titulares, que durante alguns meses deram à quinta os esplendores de uma pequena corte.
Em 1852, pela primeira vez hospedou-se na Quinta Vigia o Príncipe Fernando Maximiliano, que se dizia ter tido nesta ilha, um idílio com Maria Amélia – a doce princezinha que morreu na Quinta das Angústias – atribuindo-se especial intenção a uma formosa imagem de Nossa Senhora das Dores, oferecida pelo Príncipe à capela do hospício da Princesa Maria Amélia, em cujo altar ainda se encontra. Em 1859, Maximiliano voltou à Madeira, já casado com a princesa Maria Carlota, filha de Leopoldo I da Bélgica, que deu grandes passeios pelo interior da Ilha, cujos aspectos que mais a impressionaram, reproduziu em desenhos e aguarelas. Uma terceira vez, já proclamado imperador do México – o casal tornou a passar na Ilha, quando se dirigiam para aquele País da América latina.
Meses depois, em 1860, com apenas vinte e três anos, chegou ao Funchal, com a saúde abalada, a famosa e belíssima Imperatriz Sissi, mulher do Imperador Francisco José da Áustria, que também residiu alguns meses na Quinta Vigia. A ilha da Madeira, com os seus panoramas, o seu clima e a visão maravilhosa do mar, proporcionaram-lhe a convalescença; o que muito alegrou a população da cidade e das freguesias rurais, que percorria, e cativava pela sua generosidade e lhaneza de maneiras. Nas vésperas de partir, veio à Madeira, expressamente para a acompanhar, o Infante D. Luís, mais tarde Rei de Portugal. Passados muitos anos, essa fascinante Imperatriz doutrora, aquela que falava a toda a gente e que gostava de andar pelas serras dias inteiros, transformara-se numa mulher desgraçada e semi-louca, que aqui voltou num anseio de desesperada felicidade, ou talvez de esquecimento, isolando-se no interior da Ilha em longas e alucinadas caminhadas.

Pouco mais tarde, durante os anos de 1864 e 1865, o príncipe e general do exército russo, Nicolau de Oldenburgo, também hospedou-se na Quinta Vigia, tendo dado grande brado as suas festas magníficas, a grandeza dos actos filantrópicos e o facto de ter custeado a tradução francesa de Eurico o Presbítero, de Alexandre Herculano.
Nos meados do séc. XX, a Quinta Vigia era parque público, com diversões; e a magnífica casa tinha sido transformada em Casino, onde se realizavam bailes e festas, por ocasião da passagem do ano e noutras solenidades.

Maria Lamas, também se enamorou da Quinta Olavo, situada na Penha de França e que conserva o nome da família à qual, primitivamente, pertenceu. Todavia, no ano em que foi percorrida pela escritora, era desde há muitos anos, propriedade de Emil Guesche, cônsul da Alemanha na Madeira, entre 1910 a 1945; que tinha escolhido a ilha para viver, tendo-se tornado gerente duma casa de bordados, numa altura em que oitenta por cento dessa indústria madeirense estava nas mãos de alemães.
A fachada da casa é típica da Ilha, mas lá dentro, onde o tempo parece ter parado no séc. XIX, acumulam-se mobílias orientais e outras, valiosíssimas, de diversas épocas e estilos. Numerosas fotografias, com expressivas dedicatórias de altas personalidades alemãs – príncipes, princesas, almirantes e generais – tornam o ambiente nitidamente germânico.
Da Quinta Olavo, avistam-se três deslumbrantes panoramas diferentes sobre as montanhas, a cidade e o mar; mas o que especialmente impressiona são as suas árvores – castanheiros enormes, com mais de cinquenta anos, e outras variedades, entre as quais as da borracha e umas japonesas, cujas flores, de beleza exótica, se fecham repentinamente logo que são colhidas. Com longos bancos abertos no interior dos muros, uma parte da quinta tem o ar de velho e frondoso parque, de que nunca se esquece.

Maria Lamas ainda citou e percorreu a Quinta de Santo André, pertencente à família Mullins e localizada na zona de Santa Luzia. Vivenda luxuosa, tipicamente madeirense, pequena, risonha, com um certo requinte no jardim, primorosamente tratado, e na habitação aristocrática, onde tudo fala de épocas que vão ficando longínquas – esta quinta mantém, contudo, a frescura e a harmonia das coisas amorosamente conservadas e ligadas à vida que entre elas decorre.

No mesmo sítio, a escritora encantou-se com a Quinta da Levada, semeada numa zona do Funchal onde as quintas são contíguas – ali estão a seguir a Quinta Glicínia, a das Malvas, a de Santa Luzia, a Gracília e quantas outras.
A Quinta da Levada, foi mandada construir há cerca de duzentos anos, pela família Cossard, da qual descendia Mrs. Lee, sua proprietária em meados do séc. XX.; e possuia um inconfundível e imenso jardim, onde não faltam árvores gigantescas e raras, mas sem o traçado clássico dos canteiros, nem qualquer preocupação de simetria. Cuidadas pela dona da mansão multiplicam-se, flores, flores e flores – as mais variadas, invulgares e coloridas. Formam sebes ao longo de ruazinhas; onde o terreno é mais vasto alargam-se como qualquer cultura hortícola; guarnecem parapeitos de mirantes; revestem caramanchões; enleiam-se em velhos troncos; são, em cada palmo de terra, um prodígio de viço e beleza. Mas as francesias, os delfínios, as gardénias, as petúnias de todos os matizes, as verbenas dum azul intenso e puríssimo, e tantas, tantas outras, são das mais lindas e mimosas; que jamais a escritora tinha visto!
Mrs. Lee, além de vender as suas maravilhosas plantas aos muitos turistas que desembarcavam no Funchal, também representou na Madeira uma organização internacional, com mais de dois mil sócios, cujos serviços permitiam encomendar, telegraficamente, flores de e para qualquer parte do Mundo». (...) Este comércio delicado, aliás, importante, tinha para ela, sobretudo o interesse duma actividade que corresponde à sua vocação de jardineira e criadora de flores raras e exóticos.
Apesar de ocupada com tantos interesses e actividades, esta notável inglesa irradiava simpatia e uma alegria interior muito serena. Ficava bem entre as suas flores e árvores, aquela figura feminina, já no declinar da mocidade, simples, despreocupada de artifícios, mas gentilíssima, no mais espiritual sentido da palavra. Em casa – um autêntico home, pelo mobiliário e decoração, como pelo conforto e calor da vida espiritual que ali se respira - essa ilustre senhora ainda preenchia o resto do seu tempo, com a pintura conjugada com delicadíssimo bordado a matiz, em seda transparente. Arte decorativa, essencialmente romântica, pelos motivos, pelo jeito da execução e pela aplicação que lhe é dada: tampas de cofres minúsculos, caixinhas de pó-de-arroz e outros objectos duma indizível finura.
Por tudo isso é impossível falar da Quinta da Levada – madeirense cem por cento na profusão das flores, no panorama em que se situa, e no aspecto da casa – sem também invocar a sua dona, pois sem ela a quinta estaria incompleta ou não seria a mesma.

A escritora também ficou fascinada com a Quinta da Boa Vista, construída no séc. XVII; e que nas últimas décadas do XIX ficou na posse da família Garton, que lhe deu o actual nome. Nenhum outro lhe quadraria melhor, pois que está situada a Leste da cidade, em terrenos altos, de onde se abrange inteiramente um incomparável panorama. A casa principal ergue-se na parte mais elevada da quinta, e pelas suas proporções e situação, é das melhores e mais visitadas da Madeira.
Digna dum verdadeiro jardim botânico, a quinta encerra esplêndidos jardins e estufas, amplos relvados e um parque de singular encanto onde se encontram espécies vegetais de vários climas: eucaliptos gigantescos, araucárias e plumérias, palmeiras formosíssimas, jambeiros, acácias rubras, sumaúma e coraleiras tão exuberantes como as dos trópicos. Nas estufas florescem cactos raros, uma colecção única de musgos de todas as regiões da Madeira, outra de fabulosas orquídeas, e ainda uma estranha e exótica planta do Congo Belga, que tem uma só folha e dá uma única flor em cada ano.
Contudo, a planta de maior categoria, não por si, mas pela sua origem, é um arbusto – simples murta – que em qualquer jardim poderia viver. Tem, porém, a sua história romântica, que remonta ao casamento da Rainha Vitória, quando após as festas que se realizaram com o máximo esplendor, houve um pajem que, timidamente lhe pediu um raminho de murta do seu bouquet de noiva. Sensibilizada a soberana, ali mesmo lho deu pela própria mão. A mãe desse jovem resolveu plantar o memorável raminho no quintal da sua casa, que pegou e cresceu. Bastante mais tarde, Mrs. Garton, que tinha relações de amizade com essa família britânica, viu em Londres, a célebre murta e manifestou empenho de trazer também um ramo para a sua quinta na Madeira, conseguindo realizar aquele desejo. Assim, se enraizou e tornou vigoroso, na Quinta da Boa Vista, um pé de murta sempre tratado com particular desvelo, e que vale para a sua possuidora, como uma preciosidade.

Maria Lamas, ainda se extasiou com a Quinta Elizabeth – antiga Quinta Hollway, que pouco antes de meados do séc. XX foi dividida em duas propriedades contíguas, mas independentes, sendo uma a Quinta Elisabeth, e a outra, uma bela vivenda, com elegante piscina, ambas incluídas numa zona muita povoada, situada entre a Rua do Coronel Cunha e a Rochinha – resultante da expansão da cidade.
Embora registada na Conservatória em 1872, pelos então proprietários John e Elisa Hollway, a quinta já aparece em gravuras anteriores a essa data, embora se desconheçam os pormenores da sua origem. No último quartel do séc. XIX, ali esteve instalado um hotel de luxo para estrangeiros de categoria – o primeiro deste género que existiu na Madeira - conhecidíssimo pela vida faustosa e não isenta de escândalos...
Dessa época de esplendor, restavam o edifício enorme, várias vezes ampliado, com salões magníficos e de tão harmoniosas proporções que não destoariam num autêntico palácio; e ainda o terreno, em planos que vão subindo, sem estreiteza, e fazem desta quinta uma sucessão de balcões naturais e deslumbrantes. Destaca-se também a imponente entrada, ligada a uma rua ampla e com mais de cem metros de comprimento, inteiramente desafogada, a dominar a cidade e o mar, como varanda sobre fantástico horizonte, pelo que esta magnífica vivenda é toda ela um extraordinário mirante. De dia é um deslumbramento de cor, variedade e distância; de noite, com o Funchal iluminado e as luzes da Pontinha a reflectirem-se na água, é uma visão surpreendente, sem imagem literária que lhe corresponda.

Sempre deslumbrada, a escritora descreve ainda a Quinta do Faial, localizada nos limites da cidade, numa íngreme encosta, perto da Estrada do Palheiro, da freguesia de Santa Maria Maior. Data da segunda metade do séc. XVI a capela que lhe deu origem; pelo que é das mais antigas e ainda das maiores quintas da cidade.
A entrada desta propriedade, muito extensa e ladeada de frondosas árvores, tem um aspecto imponente e dali se abrange um belo e vastíssimo panorama, enriquecido pela largueza das vistas que a montanha oferece. A população das redondezas, ali vinha assistir à missa; e a sineta colocada ao lado da capelinha era ouvida até ao mar, quando chamava os fiéis para o ofício divino. Davam-lhe, por isso, o nome de sinal.

Chegados aqui, destacamos que Maria Lamas afirmava que são tantas as quintas funchalenses, que se torna impossível fazer referências a todas. Todavia, ainda vai desfolhando a Quinta do Visconde Cagongo, que foi visitada pelo rei D. Carlos; a Quinta da Mãe dos Homens, pertencente ao proprietário da anterior; a Quinta dos Tanquinhos e a Quinta da Boa Nova, na estrada do Palheiro, com um panorama de sonho e capelinha antiquíssima revestida de azulejos preciosos e baixos-relevos de primitiva ingenuidade – únicos na Madeira. Lembra ainda a Quinta do Belo Monte, a do Prazer e a das Laginhas, todas na freguesia do Monte; e também a Quinta de São Roque, a das Maravilhas, e a Vila Passos, com uma situação privilegiada e jardins de surpreendente exuberância; todas elas motivo de encanto e, sobretudo, de orgulho para a Madeira e os madeirenses.

Recriamos o fascínio da escritora pelas maravilhosas quintas do Funchal, onde segundo a sua convicção se encontram as mais belas árvores exóticas, sendo algumas exemplares únicos na ilha. Pelos resultados obtidos – as plantas tropicais e as dos países temperados desenvolvem-se igualmente, lado a lado e reproduzem-se com a maior facilidade – está provado que a Madeira poderia ser um extraordinário jardim experimental. Muitas quintas madeirenses, sobretudo as que foram construídas por ingleses, são pequenos jardins botânicos, quando não pela quantidade, pela raridade das suas árvores e plantas de menor porte.
Nas propriedades desse cunho construídas fora do Funchal, que em meados do século passado a romancista também percorreu, e sobre as quais nos iremos agora debruçar, Maria Lamas comenta que impera o mesmo gosto, ambiente e riqueza florestal, que neste solo e neste clima se propaga surpreendentemente, tornando as quintas madeirenses umas das maravilhas mundiais, dignas daquela cidade que, quanto a nós, tem todos os atributos para ser Património Histórico Mundial da Humanidade.

A escritora começa por desfolhar a Quinta do Vale Paraíso, situada a cerca de setecentos metros de altitude, no Sítio da Achada do Chiqueiro, da freguesia da Camacha, com um horizonte vastíssimo, que abrangia grande parte do Sul da ilha, e donde se avista, totalmente, o belo panorama que vai do Cabo-Girão até à Ponta de São Lourenço.
No segundo quartel do século XIX, o inglês Hollway – o mesmo que mandou construir no Funchal, a Quinta Elizabeth – nos seus passeios pela serra, foi atraído pelo admirável enquadramento daquele espaço encantador e logo decidiu transformar esse lugar desabitado, numa sumptuosa quinta de ambiente tipicamente inglês, a que pôs o seu nome. Mandou erguer duas casas de aparência despretensiosa, mas mobiladas e decoradas com desusada riqueza para habitações de veraneio. Interiormente, eram de um luxo notável: mobiliário, tapeçarias, quadros, loiças – tudo valiosíssimo e de apurado gosto; sendo que não há muito tempo, foi autenticada como de E. Duncan uma das telas que ali existia. (...) Também os jardins foram delineados com largueza, num harmonioso plano de conjunto, com relvados extensos e bem lançados. Entre as árvores do vastíssimo parque, haviam exemplares soberbos, vindos de outras paragens e raríssimos. Alguns resistiram ao tempo e aos fortes vendavais que os sacudiram, e ainda hoje embelezam e cobrem de agradável sombra as alamedas e caminhos da quinta.
A colecção de cedros era um dos orgulhos de Hollway e em toda a ilha falava-se dela, bem como do extraordinário aviário, povoado por pavões, faisões e variadíssimos pássaros do Brasil, de África e de outros pontos distantes da terra; - ave que devastavam, frequentemente, as hortas dos colonos vizinhos que, por vezes, procuraram dizimá-las, o que deu origem a vigorosas polémicas e até a alguns pleitos judiciais.
Nas cavalariças havia sempre cavalos de raça, para os passeios na serra. E no Pico do Rato – a parte mais alta da propriedade – foram construídas casas para os pastores e grandes currais de Inverno, para os numerosos rebanhos que, durante o resto do ano, pastavam, livremente, nos extensos terrenos em que a quinta se alargava.
Mais tarde, a propriedade foi vendida ao inglês Randall, que ali residiu durante alguns anos; mas quando ele saiu da Madeira, deixou-a entregue a um procurador, que não a cuidou devidamente, e aos poucos e poucos a herdade foi entrando em profunda decadência, com as casas desabitadas, e os belos jardins e tudo o resto ao abandono.
Até que, em 1891, João António de Bianchi, Visconde de Vale Paraíso, também se sentiu fascinado pelos maravilhosos panoramas daquele local e comprou a quinta. O seu entusiasmo por ela, manteve-se até ao fim da vida. Ali ia passar o Verão, sentindo-se feliz naquela mansão, de beleza e tranquilidade, rodeado da numerosa família; e não poucas vezes as suas salas e jardins foram cenário de brilhantíssimas festas.
Nessa época romântica, recheada de elegantes convívios e animadas diversões; ficou memorável, o grandioso banquete realizado quando os donos da quinta comemoraram os doze anos de casados. Ninguém faltou, o mesmo é dizer que ali se reuniu a mais alta sociedade do Funchal. Como não havia estradas, os setes quilómetros que separam a quinta da cidade, foram percorridos a cavalo, em rede e carros de bois, perante o espanto das gentes dos casais vizinhos, ofuscadas com o brilho de toda a comitiva e, sobretudo, com os luxuosos vestidos das senhoras.
As festividades decorreram ao ar livre; e depois do lanche servido no corte de ténis, sob um toldo enorme, suspenso das árvores que circundavam o recinto, dançou-se num estrado propositadamente construído para esse fim, coisa inédita nessa altura, em pleno campo, e entre pessoas daquele nível social; com o preciosismo dos músicos, vestidos a rigor e de sobrecasaca, tangerem violinos, rabecão, piano e todos os demais instrumentos duma completa e soberba orquestra de dança. Outra nota curiosa reside no facto de apesar de nesse dia festivo estar um tempo maravilhoso, corria, porém, uma suavíssima aragem, própria da altitude, mas um tanto fresco para a leveza dos vestidos, pelo que houve que recorrer aos xailinhos de modo a agasalhar os colos decotados; outro imprevisto a dar maior feitiço e colorido encanto a festa tão original.
Nos jardins da Quinta Vale Paraíso, repousa um sino de grande valor histórico, que pertencia ao vapor Dácia, afundado com a canhoneira La Surprise, e o Kanguroo, quando em 3 de Dezembro de 1916 – durante a Primeira Grande Guerra (1914–1918) – submarinos alemães torpedearam o Funchal, causando o afundamento daqueles três barcos e duma barcaça, dezenas de vítimas, consideráveis estragos em terra, e horas de indescritível pânico.
Em meados do século passado, esta propriedade continuava a ser um lugar de beleza pela pujança do seu arvoredo, pelos panoramas que dali se avistam, e pelo indizível sortilégio que lhe ficou do passado e que ainda se não desvaneceu naquele ambiente. Há em tudo uma espécie de sonolência:- as casas, os jardins, os caminhos do parque falam de solidão e distância. Para quem ali vai no período em que lhe falta a animação humana, a quinta sugere uma grandeza fatigada e silenciosa; mas sente-se que a seiva circula, forte, naqueles troncos; e paira no ar uma confortante expectativa.

De forma deslumbrada e enternecida, a escritora descreve a Quinta do Serrado das Ameixieiras, situada na garrida freguesia do Santo da Serra, que é uma espécie de Sintra da Madeira, cheia de quintas e lindas vivendas, com os seus hotéizinhos confortáveis e discretos, e o golfe muito frequentado pelos ingleses.
A casa da propriedade foi construída no século XVIII, por arquitecto que se desconhece o nome e a origem. Porém, sabemos que cerca de meados de oitocentos, a quinta pertenceu ao inglês Marsh, que aí mandou plantar uma boa parte das deslumbrantes árvores, fazendo dela um verdadeiro éden. Conhecemos também, que o seu período de vida faustosa e de grande animação, aconteceu quando a Quinta das Ameixieiras passou a ser propriedade do Conde da Calçada, tendo sido até um irmão da condessa quem, em 1863, delineou os maravilhosos jardins, descritos por Maria Lamas, como concebidos por um artista numa perspectiva admirável, que os integra harmoniosamente nos maciços de camélias que os rodeiam.
Uma atmosfera quase irreal e de profundo romantismo, colhe-se no seu todo de mata maravilhosa, em que os carvalhos, os incensos, os loureiros, as faias, os tis e os folhados se misturam com as árvores de fruto. Quando as ameixieiras florescem! Quem poderá descrever tanta beleza. Dir-se-ia o domínio duma fada que ali tivesse escondido a sua mansão, com a particularidade de nos mostrar novos aspectos da paisagem madeirense e nos fazer esquecer o mar. A floresta domina. Os largos horizontes ficam para lá dos troncos e da folhagem, que tecem, com a luz, poemas singelos – respiram-se no próprio ar, estão suspensos sobre nós e como um dossel mágico, espalham-se no chão em rendas de sombra e claridade. Um bucolismo intenso e ao mesmo tempo embalador, a que nem falta, num pequeno largo junto aos portões da quinta, um suave pedestal rectangular, onde as amazonas subiam para montar a cavalo – desporto muito praticado noutras eras, quando não havia automóveis e em vez de estradas, só existiam caminhos estreitos, empedrados de seixos redondos e quase sempre em suaves degraus à moda da ilha.
De resto, nem é necessário fantasiar, pois a história romântica está escrita no próprio ambiente. Não há somente a casa, o jardim, o lagozinho e a chuva de camélias rubras a colorir o chão; não são apenas os musgos claros e leves como farrapos de musselina pendurados nos ramos. Outros sinais de antigos romances se nos vão deparando a cada passo: aquelas duas pontes, ambas estreitas e rústicas, sobre o ribeiro que vai correndo nas terras da quinta, falam de juventude, amor e tristeza... Ponte dos Namorados... Ponte da Saudade... Querem nomes mais explícitos?
Quando em meados do século passado, a escritora descreveu esta maravilhosa propriedade, que pouco antes tinha passado a ser conhecida por Quinta Acciaiuoli -. porque à família do Conde da Calçada se ligou, pelo casamento, uma pessoa daquele apelido, que lhe tinha especial predilecção - e embora já não se notando cuidados de conservação recente; o seu cenário continuava a ser, só por si, um deslumbramento e uma sugestão poética.
Na verdade, o Serrado das Ameixieiras era uma quinta doutro tempo. Nada é de hoje, naqueles lugares. Nem pretende fazer que é. Velhinha, a casa, para mais sem abrigar vida humana que lhe dê animação e calor; pendem-lhe do telhado franjas de pastinha, as janelas com seus airosos balcões onde se enleiam rosas de toucar, estão fechadas e desguarnecida de cortinas; e os jardins prolongam-se em frente, numa perspectiva admirável que os integra, harmoniosamente, nos maciços de camélias rubras, que de forma espontânea, são rodeados. O desenho dos canteiros desapareceu sob as plantas que à vontade ali crescem e vão florindo, exuberantes, cada uma na sua época. O lagozinho, com o seu jogo de água, é talvez o único pormenor decorativo que não se confundiu com a natureza. Toda a vastíssima propriedade era uma floresta cujas frondes esbatem a luz sem chegarem a tornar sombrios os caminhos que sob elas passam. Há recantos de verdura, com buxos altíssimos, escondendo aquele pequeno lago de sonho; e certas perspectivas com o seu quê de irreal, a desenrolarem-se por entre o arvoredo e festões de hortênsias. Mal chegue Julho, será uma sinfonia, verde-azul, aquela vereda que se não vê o fim, até que nos encontramos em surpreendente miradouro, sobre um vale acidentado e extenso, com o mar ao longe – único recanto naquela quinta de sonho onde a escritora avistou o Oceano.

Localizada na freguesia do Estreito de Câmara de Lobos, floresce a Quinta das Romeiras, que embora simples propriedade de veraneio, com a sua casa despretensiosa, mas agradável, encantou Maria Lamas, pelo vasto terraço aberto ao mar e pela sua soberba colecção de begónias tuberosas que pelo colorido e perfeito desenvolvimento, é tão fascinante e rara, que justificaria uma exposição anual para deslumbramento de quantos gostam de flores, ou simplesmente, são sensíveis à beleza. Do branco neve ao salmão, ao carmesim, ao amarelo-oiro e ao roxo, passando por todas as escalas de tons; esta belíssima colecção muito deve ao amor, devoção e sobretudo aos desvelos e cuidados por parte dono da Quinta, o advogado Alberto Araújo. E em paga de tanto apego, elas ali estão viçosas, lindas, duma quase inverosímil finura – visão que fascina e perdura em suavíssima lembrança.

Um pouco mais acima, mas na mesma freguesia do Estreito de Câmara de Lobos, a escritora ficou rendida ao inefável bucolismo da Quinta do Jardim da Serra; cujo nome corresponde ao encanto da Natureza, não apenas em relação à Quinta, mas a toda aquela região, de que tomou o título.
A magnífica casa desta propriedade, foi mandada edificar na primeira metade do séc. XIX, pelo Cônsul inglês Henrique Veitch, personalidade original e um tanto excêntrica, que se enamorou da Madeira, onde construiu vários edifícios e típicas moradias. Mas, o seu lugar de eleição sempre foi a Quinta do Jardim da Serra, sendo até nela que quis ficar sepultado. Lá está, num ponto onde muito gostava de passar as horas de repouso e de meditação, o singelo mausoléu mandado erigir pela sua viúva em 1857, ano da sua morte, em satisfação do desejo que insistentemente manifestou em vida.
A situação da propriedade é privilegiada, pois ergue-se numa elevação, mesmo a meio do vale, dali se descobre majestoso e variado panorama, que se estende por entre serranias, em anfiteatro, frente ao mar distante. De cada lado corre um ribeiro, juntando-se os dois, mais adiante, numa queda de água de belíssimo efeito e formando depois um só curso até à desembocadura. As suas pontes de rústico alçado, dão à Quinta mais um encanto - e tantos ela possui!; muitos deles da autoria do espírito e da fantasia do próprio Henry Veitch, que além de alindar os arredores da moradia, mandou plantar árvores raras e verdejantes, e também ensaiou a plantação de outras espécies pouco conhecidas na Madeira.
Para lá chegarmos, subimos um caminho prenhe de pomares e belos jardins, até atingir oitocentos metros de altitude. Então deparamos com a mancha vermelha da casa e, à frente, o seu muro, com arcadas a limitar-lhe, a esplanada donde se vê o mar. Fica-se surpreendido e deslumbrado também. Apetece parar e contemplar demoradamente aquela estampa singularmente formosa, policroma e de tal forma enquadrada na harmonia total, que dir-se-ia ser ali tão natural como os montes e a matas que lhe servem de moldura.
Ao aproximarmo-nos ainda mais, multiplica-se o encanto emanado pelas ruazinhas bem cuidadas, que nos levam por entre árvores gigantescas e renques de novelos azuis, como num país de sonho. De facto, os bosques e o arvoredo do Jardim da Serra, são sinfonias de exemplares espantosamente fortes, copados e vetustos. (...) Olha-se para eles como amigos - carvalhos, vinháticos, pau-branco, loureiros, til e outros colossos.
Sabemos até que, quando um soberbo castanheiro ali brotava em pleno alento, alto como uma torre, com sete metros e meio de perímetro na base, Veitch montou um cata-vento, nos ramos mais cimeiros, maquineta a que o povo chamou adivinha tempo. A meia altura do tronco, onde os ramos formavam uma espécie de suporte, também mandou instalar uma original mesa, aonde ia frequentemente tomar chá... Mas, a velhice foi corroendo o gigante. Já muito carcomido, cheio de cavernas, um vendaval derrubou-o, numa noite pavorosa, fazendo-o rolar para o leito da ribeira. Tudo quanto resta dessa árvore notável é um cepo morto - em todo o caso ainda fora de comum, pelas suas dimensões.
Em volta de toda a lonjura da casa, levantam-se soberbas montanhas que, pelo contraste da sua rudeza, maior realce dão à fertilidade e sedução do vale. Nas cumeeiras, para Leste, abrem-se a Boca das Namorados e, a pouca distância, a Boca da Corrida, donde se avista, nas profundezas de formidável cratera, o Curral das Freiras. Nas vertentes próximas, a estrada vai-se desenrolando em voltas e voltas, numa região das mais mimosas da Ilha, toda ela um jardim e um pomar, com a ribeira a correr lá no fundo.
Maria Lamas deleitou-se ainda com o espectáculo das cerejeiras floridas, em que a brancura das flores transfigura tudo e dá à paisagem uma leveza quase imaterial. Também se cativou com a lembrança dessas árvores cobertas de frutos, encarnados e reluzentes como rubis suspensos da folhagem; e jamais esquecerá o dia das cerejas, que lhe deu a alegria nova de ver essa mimosa fruta nas mãos de crianças e adultos, num festival de fartura em que a própria natureza colaborava no folguedo do povo – mais alacre do que ele: as cerejeiras riam; os cestos atestados de cereja riam; os brincos de cerejas tornavam mais claro e moço o riso das raparigas; e os raminhos de cerejas eram manchas rubras, risonhas, a ressaltar na tela imensa e já de si maravilhosamente colorida.
Sobre o construtor da casa, Henry Veitch, contam-se outras originalidades, que ao mesmo tempo são matizes da história da Madeira do séc. XIX. Em 1817, plantou junto aos jardins, dezasseis pés de chá que conseguiu mandar vir da China, e que se foram desenvolvendo até atingir cerca de quinhentos, em 1841. E apesar do rigor do Inverno naquela altitude, aonde chega a cair neve, embora de curta duração, o certo é que foi possível obter magnífico chá, autenticamente madeirense, apreciadíssimo pelos que alguma vez o tomaram.
Diz-se também que esse cônsul inglês foi a única pessoa da Ilha que conseguiu avistar-se e falar com Napoleão, quando este, em Agosto de 1815, permaneceu no Funchal, a bordo do Northumberland, a caminho do exílio em Santa Helena. Esta façanha deve-se ao facto de ter tratado Bonaparte, por sua majestade imperial; bem como à oferta de livros, frutas e vinho velho da Madeira, gesto que Napoleão apreciou muitíssimo. Tanto, que encomendou a Veitch umas pipas, que deveriam ir-lhe consignadas para aquela ilha. Deste modo, o primeiro navio que por aqui passou com destino a Santa Helena, transportou para Bonaparte um carregamento de vinho; o que muito lisonjeou os madeirenses. Todavia, o mesmo cargueiro que levara a preciosa encomenda, no retorno ao Funchal, descarregou essa mercadoria... Por falta de dinheiro, ou porque ignorassem do que se tratava, ou talvez porque o próprio Napoleão houvesse já esquecido o encontro com Veitch, o delicioso néctar voltou à origem.
Muitos anos após, esse vinho do imperador como passou a ser conhecido, por ocasião das partilhas da herança deixada pelo chefe da casa Blandy, que antes o havia exportado, coube a uma das suas filhas, que Maria Lamas refere ter sido duma formosura rara; conforme vislumbrou num retrato, que existia na Quinta do Vale Formoso, um autêntico jardim botânico, propriedade de Mr. Grabham, que era filho daquela senhora. Aquele néctar precioso foi cuidadosamente engarrafado e guardado, para obsequiar, excepcionalmente, alguém, ou então para ser bebido, em ocasiões solenes, sempre numa espécie de ritual.
A finalizar, a escritora refere que a Quinta do Jardim da Serra, que depois da morte do seu primitivo proprietário foi comprada por uma antiga família madeirense, pertencia em meados do século passado aos irmãos Juvenal e João Araújo, que muito amavam aquele lugar, onde, aliás, permaneciam todo o Verão, e não se limitavam a conservar-lhe o antigo esplendor vegetal, mas constantemente lhe acrescentavam melhoramentos e valorizavam as extraordinárias condições da mansão maravilhosa e repousante.

Maria Lamas, também ficou seduzida pela típica atmosfera da Quinta da Estrela, situada no Caniço, ao sítio da Vargem, onde outrora existiu uma colegiada da Ordem de Cristo, mas que não sabemos em que ano foi construída. Datam desse tempo um ornamento em alvenaria, semelhante a uma mitra, que se vê sobre uma das portas da propriedade e uma estrela que existe numa das paredes da casa de habitação; a qual deu o nome à quinta, (…) e toda a gente da região se lembra de o ter visto ali – tão antigo ele é.
Os cónegos venderam essa propriedade, que teve diversos donos, até que, em 1870, foi comprada pelo Barão da Conceição, que sem alterar a parte mais antiga e com aspecto monástico, mandou executar grandes melhoramentos e ampliações para adaptá-la a aprazível moradia de Verão, com arvoredos, belos jardins, lagos, corte de ténis e jogo de croquet. A casa ficou ao gosto inglês com um salão puro estilo Queen Anne e nada mudou desde o tempo em que ali se reunia uma sociedade elegante, de sobrecasacas e saias de balão. Lá está, no mesmo lugar, a cadeira de espaldar estofado, onde se costumava sentar-se a dona da casa – formosíssima e duma distinção de que ainda hoje se fala.
Mas, o que constitui a característica mais espectacular da Quinta da Estrela é a sua assombrosa situação, assente num planalto de estranha configuração geológica, erguido a prumo, sobre o oceano. No extremo das rochas foi construído um mirante – caleidoscópio fantástico, onde cada hora tem a sua claridade. O mar, donde se avista a sinfonia alacre dos barcos de pesca e onde passam grandes navios e pequenas lanchas de carreira; transfigura-se em visões nunca interrompidas. Lá estão as Desertas – ilhas de mil tonalidades, ora esfumadas em bruma, ora a recortarem-se nitidamente num cinzento-escuro e azulado, ora em relevos de madrepérola onde refulge os últimos raios de sol poente. (...) Também lá está o encanto do alvor das madrugadas! E o luar! E as noites recamadas de estrelas! E os temporais! E as trovoadas longínquas, abrindo clarões no infinito e riscando as lonjuras com ziguezaguear de fogo! Tudo ganha fascinação visto dali. Quem está lá em cima tem a visão de pairar no espaço e contemplar um mundo imaginário.
Em meados do séc. XX, o neto do Barão da Conceição, proprietário da quinta, manteve a atmosfera romântica, com jardins e parques livres de alindamentos artificiosos, e com ar de abandono a dar-lhes uma expressão de espontaneidade. Sob o musgo que atapeta as ruazinhas empedradas sente-se o vigor das raízes que as alteiam; a caruma dos pinheiros exóticos, - tão fina e macia – é como fofo colchão estendido sobre a terra. As árvores, sem mutilações propositadas, nem simples podas que lhe contrariem a exuberância, mostram-se belas na sua vetustez. Os álamos prateados são os aristocratas daquela flora magnífica, onde os gigantescos incenseiros, loureiros, carvalhos, plátanos, cedros e acácias formam dossel a maciços de rosas, camélias, cardiais, fúsias e festões azul-lilás de coroas de Henrique. (…) A única inovação é o grande lago, raro nas quintas madeirenses, várias vezes ampliado e onde pode navegar desafogadamente um bote.
E se é certo que na Quinta da Estrela, com o seu horizonte marítimo e a quietação, tudo é propício à meditação, por mais paradoxal que pareça, também desperta e estimula o instinto de vida sadia, em contacto com a natureza, que anda esquecido ou recalcado no fundo de cada ser humano.

Para a escritora, foi muito surpreendente mas aprazível conhecer a Quinta de São Cristóvão, que ficava a uns três quilómetros da Vila de Machico e foi construída em 1692, assim como a capela, por Cristovão Moniz de Menezes, o Grande – descendente directo dum dos povoadores da Madeira, que teve sesmaria no Caniço e farta casa em Machico, sendo instituidor dum morgadio em 1489.
Trata-se duma quinta do século XVIII, claramente madeirense, onde tudo evoca os antigos morgadios, desde a casa vermelha ao ambiente rural, somente amenizado pelo parque fronteiro ao solar, onde, em época mais recente, se jogava o croquet à sombra de frondosos paus-ferro, árvores de grande porte, hoje raríssimas na Ilha.
Na capela existe um enorme quadro, de reduzido valor artístico, mas de grande importância documental, pois na parte inferior da tela figuram numerosos membros da família, e entre eles o seu fundador. Estão todos de joelhos, aos pés do santo; e sobre as suas cabeças vê-se o brasão dos Moniz de Meneses.
Desde que o solar e a capela foram edificados, os seus proprietários contavam de pais para filhos, que o seu fundador, teria deixado devidamente acautelado, em qualquer parte que não revelou, o dinheiro suficiente para que, se algum dia a capela caísse, outra se erguesse no mesmo lugar. Muitos herdeiros do vínculo acreditaram naquela versão, a ponto de, em diferentes épocas, terem feito escavações e outras pesquisas. E essa convicção restou tão arreigada, que chegou intacta até aos actuais donos da propriedade. Aliás, para os caseiros de S. Cristóvão e até para a outra gente que por ali vive, esta história do tesouro escondido, verdadeira ou não, tomou o sabor de uma lenda. (...) Simplesmente, chegou-se à conclusão de que só quando a casa e a capela forem completamente destruídas será possível encontrá-lo.
Os terrenos da herdade, implantados na parte mais interior do vale, são vastíssimos, abrangendo numerosos casais cultivados com esmero, numa típica paisagem madeirense donde mal se avista o mar. A sua fertilidade e completo aproveitamento ressaltam ainda mais no contraste com a majestade agreste dos montes que os circundam.
Ainda hoje, contam-se muitos sucessos e histórias doutros tempos, vividas na quinta, tais como a que se refere a um morgado que passando pelos seus domínios, encontrou alguns caseiros que trabalhavam na construção duma parede – o típico poio madeirense. Como estivessem a brocar um pedregulho observou-os, atentamente, decidindo experimentar a sensação de voar. Assim, sentou-se sobre a rocha que estava a ser brocada e ordenou aos homens, pasmados e julgando que o fidalgo enlouquecera, que acendessem o rastilho. A pedra rebentou, atirando com o morgado a razoável distância – uns três poios mais abaixo. O espantoso foi que ele se levantou fresco e lépido, sem uma beliscadura sequer. O pasmo e a aflição dos caseiros transmudou-se em assombro e supersticioso respeito: até parecia coisa milagrosa! Ou andaria ali obra do diabo?
A morgada não era menos excêntrica e também tinha os seus rompantes...Uma vez recusou-se, terminantemente, a acompanhar o marido a qualquer sítio onde ele entendia que deveriam ir os dois. Então o morgado agarrou-a, soltou-lhe as longas tranças e, perante o pavor dos criados, arrastou-a até a porta e tê-la-ia arrastado pelo caminho se ela não acabasse por ceder.
E, devido ao facto do morgado ser um ferrenho miguelista, quando chegou a notícia da derrota dos absolutistas, com a informação de que as famílias dos vencidos sofreriam cruéis represálias, a morgada escondeu as pratas da casa e tratou de se disfarçar o melhor que pôde, e aos filhos, mascarando-se todos com carvão e vestindo-se com os trajes mais velhos dos caseiros. Assim fugiram pelos campos de Machico até às serras. Quem via passar aqueles vultos negros e miseráveis estava bem longe de supor que se tratava da orgulhosa morgada de S. Cristóvão e dos seus descendentes…
Mas, o que mais assombrou Maria Lamas, foi verificar a manutenção de muitos dos antigos usos nas relações entre senhorios e caseiros, os quais ainda dão o tratamento de morgado ao actual proprietário. E não só em São Cristóvão, mas em toda a região de Machico, era frequente os velhos camponeses ajoelharem diante dos donos das terras, para os abraçar pelos joelhos, como humilde saudação e demonstração de afecto – uma sobrevivência dos tempos idos.

A magnificência harmoniosa da Quinta do Palheiro, também fascinou Maria Lamas, que a descreveu como a mais extensa e sumptuosa da Madeira e a maior propriedade do género existentes na península Ibérica; cuja grandiosidade, traçado dos jardins, bem como a extraordinária variedade da sua flora, surpreendem mesmo aqueles que muito têm viajado e conhecem as mais belas mansões do Mundo.
Fica a Leste do Funchal, a 550 metros de altitude, distribuída pelas freguesias de São Gonçalo, Camacha e Caniço; e está recheada por parques que incluem espécies das mais diversas partes da Terra, algumas raríssimas, alindadas pela beleza panorâmica e a vastidão das vistas, sobretudo nomeadamente no Sítio do Balancal, que domina a cidade e a baía, num quadro verdadeiramente deslumbrante, numa autêntica sinfonia de formas, cores e encanto.
A Quinta do Palheiro do Ferreira, como era conhecida, foi inicialmente uma grande mata, mandada plantar pelo 1º Conde de Carvalhal em princípios do séc. XIX. Ali floresceu e cresceu o mais antigo viveiro de carvalhos da Ilha, depois transplantados para diversos pontos, sobretudo para os adros das igrejas. A casa então construída naquele imenso domínio, era apenas um pavilhão de caça. Mais tarde o Conde edificou a residência e a capela, ao mesmo tempo que toda a quinta, de ano para ano, se tornava mais opulenta, pela plantação de novas espécies vegetais, bem como devido à ampliação dos relvados e à construção de casas de lavoura. Este esplendor só foi possível porque o proprietário trazia das serras grandes caudais de água, para fertilizar os terrenos e abrir nos jardins e no parque, numerosos lagos, cascatas e um tanque de invulgares dimensões.
Em 1885, o inglês J. B. Blandy comprou todo o conjunto; e mandou edificar uma nova casa, de estilo vitoriano, muito mais ampla e espaçosa que a antiga, e enquadrada em arvoredo e florestações prodigiosas, donde se avistavam perspectivas fascinantes. Interiormente é duma perfeita harmonia – duma riqueza imponente, mas sem espavento, confortável, bela, tipicamente inglesa. Os parques foram aumentados com vastíssimos relvados que se estendem por entre as árvores, e em qualquer época do ano os jardins são uma apoteose de verdura e flores. As camélias, um prodígio! (as cinco mais antigas - entre milhares que florescem na quinta – medem, cada uma dez metros de altura.) Os múltiplos tons de verde, em permanentes combinações que o calendário não altera, servem de fundo a quadros de beleza fantástica.
Na Primavera dir-se-ia uma orgia de cores saltitando ao longo das ruas, nos canteiros, revestindo os troncos das árvores, e em cada recanto que se descobre. No Inverno, as orquídeas florescem em vasos como no chão; dezenas e dezenas de variedades, de formas caprichosas e inverosímeis; entremeadas com azáleas que formam sebes que chegam a atingir a altura das árvores. Quando chega Junho o Jardim da Senhora é todo ele um rio de corolas delicadíssimas, onde as flores próprias dos nossos climas misturam-se com outras exóticas. A série de tanques, guarnecidos com artísticas grades de ferro, em frente da velha casa, ligada por canais que conduzem a água através dos jardins, forma um maravilhoso desenho policromo, delineado a frésias, tritónias e tantas outras flores, com as árvores a se reflectirem nas suas águas.
A Quinta do Palheiro, onde se realizaram eventos e festas brilhantíssimas, foi visitada por altas personalidades nacionais e estrangeiras, tais como arquiduquesa Leopoldina da Áustria, que em 1817, passou na Ilha a caminho do Brasil, onde ia casar com o Imperador Pedro I. Em 1901, os soberanos portugueses D. Carlos e D. Amélia também lá estiveram; confessando-se deslumbrados e maravilhados com aquela propriedade, que é um verdadeiro motivo de orgulho para a Madeira.
Outro facto digno de registo foi o privilégio que o Conde de Carvalhal concedeu aos madeirenses de, uma vez por ano, no dia 1º de Maio, poderem conhecer, permanecer e usufruir as belezas da quinta, cujos portões se abriam para todos. Tal costume tornou-se tradição e nesse dia a Quinta do Palheiro enche-se de gente da cidade e das freguesias próximas e distantes, que ali espairece e come os seus farnéis, divertindo-se a seu modo, numa expressão diferente das romarias. Canta-se, dança-se e folga-se em grupos variados, sem qualquer constrangimento. Os relvados desaparecem sob a multidão que neles se instala, regaladamente, e as ruas dos jardins e as alamedas do parque são formigueiros humanos – sem atropelos, numa animação comunicativa e sadia. Mas o que deixou a escritora fortemente surpreendida, foi saber que não havia estragos, nem flores colhidas, nem mesmo papeis pelo chão, pois cada um tem cuidado de deixar limpo o sítio onde acampou.
E o certo é que a maioria da população da Madeira reserva o 1º de Maio para os seus passeios predilectos, tanto assim que esse feriado foi mantido, em toda a Ilha, por expressa vontade dos seus habitantes; e quem tiver partilhado com o povo a alegria do seu dia, na magnificência de tal cenário, guardará também uma impressão reconfortante de fraterno convívio e de confiança nas ilimitadas possibilidades de valorização humana, sob a influência do belo e do respeito mútuo.

Maria Lamas fecha o seu estudo sobre as quintas rurais madeirenses, começando por lembrar, que para além das propriedades que acabou de descrever, existem algumas mais, que lhe foi impossível visitar e estudar com minúcia, tais como A Quinta do Miradoiro e algumas outras na Choupana; A Quinta Ornelas na Camacha; e algumas mais no Santo da Serra.
De seguida, especifica várias quintas madeirenses que antes de meados do século passado deixaram de ser residências e foram adaptadas a outros fins. Estão neste caso a Quinta das Cruzes, última moradia de Gonçalves Zarco – a mais bela casa antiga, que tem passado por várias transformações e onde então se encontrava instalado o magnífico Museu de Artes Decorativas. No seu jardim cultivam-se azáleas e orquídeas maravilhosas, dignas de figurarem nas mais categorizadas exposições de flores, em qualquer parte do Mundo. Cita ainda a Quinta Magnólia, toda ela um parque admirável, com as suas grutas e a passagem subterrânea para o mar, na qual foi instalado o Clube Inglês; a Quinta Calaça, edificada por H. Veitch, onde viveu durante muito tempo um príncipe polaco, e é a sede do Clube Naval; a Quinta Reid, no Bom Sucesso, onde funciona a Secção Agrária; e outra quinta, no Santo da Serra, também mandada construir pelo cônsul inglês Veitch – extensíssima, com um mirante donde se avista um dos mais surpreendentes panoramas da Madeira e, num recorte das montanhas, a silhueta longínqua do Porto Santo – transformada em campo experimental de fruticultura e horticultura. Finalmente, na parte rústica da Quinta Deão, com árvores soberbas, Maria Lamas lamenta o facto de projectarem construir um moderno bairro residencial, que ficará enquadrado no seu parque, que deste modo perderá todas as famosas e únicas características.

A escritora lembra ainda, que as árvores e as flores são o ornamento natural e deslumbrante não apenas das quintas, mas das vivendas médias e das modestíssimas habitações rurais. Há freguesias que são, todas elas, um jardim, até porque a maioria dos madeirenses são jardineiros natos. Nos cântaros rústicos crescem exemplares formosíssimos e não tardará muito que as orquídeas, as azálias, os antúrios e as aves do paraíso; se tornem como as hortênsias e as coroas de Henrique, flores espontâneas nos campos da Ilha.
A concluir o capitulo, Maria Lamas afirma com grande convicção, que um relato completo e aprofundado das quintas madeirenses, daria no seu encadeado, uma nova história da Madeira, imensamente viva, e com muitos aspectos inéditos, desde a distribuição das terras, às relações entre colonos e senhores, aos morgadios e capelas vinculares, e aos estrangeiros que aqui se estabeleceram ou passaram.

AAs

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